A Tunísia era, desde 2011, o exemplo mais bem acabado de democracia que emergiu da chamada Primavera Árabe, a onda de revoltas populares nos países do norte da África e no Oriente Médio que, aliás, nasceu ali quando o jovem verdureiro Mohamed Bouazizi ateou fogo ao próprio corpo para protestar contra um sistema corrupto que lhe retirou os produtos os quais vendia para sustentar a família.
A autoimolação do jovem de 24 anos, em um país assolado pela corrupção, desemprego, miséria e falta de liberdades políticas, servira de catalisador dos levantes sociais contra os governos autoritários.
Ato contínuo, o Egito derrubou o ditador Hosni Mubarak, realizou as primeiras eleições livres em 30 anos, mas os militares contrariados com o resultado voltaram para mostrar quem realmente manda no país. Na Líbia, a revolta se transformou em um conflito tribal que levou Muamar Kadafi à morte e destruiu o país, hoje nas mãos de senhores da guerra e milícias. Iêmen e Síria, como se sabe, foram tragados para infâmia. No primeiro, o ditador Ali Abdullah Saleh caiu, mas o país se esfacelou em uma guerra com envolvimento de atores externos. Na Síria, o país também se esfacelou em uma guerra com envolvimento de atores externos, mas o ditador, Bashar al-Assad, permaneceu.
Na Tunísia, não houve nada disso. O ditador Zine el-Abdine Ben Ali foi destituído praticamente sem derramamento de sangue. Houve eleições e um governo civil assumiu. Foram 10 anos de democracia, mas que falhou em entregar governança sólida e prosperidade.
Ontem, a Tunísia acordou imersa em uma grave crise política depois que o presidente Kais Saied decidiu, no domingo (25), suspender o parlamento, destituir o primeiro-ministro Hichem Mechichi e atribuir-se plenos poderes executivos, o que levou o partido Ennahdha (islâmico moderado) a denunciar um "golpe de Estado". A Turquia, aliada de Ennahdha, pediu a restauração da "legitimidade democrática" e a Alemanha exigiu a "retomada da ordem constitucional o mais rápido possível".
Há vários fatores em jogo. O primeiro deles uma disputa interna por poder entre Saied e Mechichi, que vivem em conflito há muito tempo. Segundo: um modus operandi conhecido, o presidente com grande popularidade aproveita-se de brechas da Constituição para justificar a quebra da ordem institucional. No caso tunisiano, o artigo 80, que evoca como perigo iminente. Esse artigo é aplicado por 30 dias, ao longo dos quais a Corte Constitucional deve decidir se prolonga ou não sua vigência. No entanto, essa instituição ainda não pôde ser lançada devido à agitada vida política da Tunísia desde a aprovação da Constituição em 2014.
O presidente e o parlamento foram eleitos em votos populares separados em 2019, enquanto o primeiro-ministro assumiu o cargo no verão, substituindo outro governo de curta duração. A Tunísia teve nove governos desde a Primavera Árabe, muitos deles de vida curta ou fragmentados.
O terceiro e mais importante são fatores de desestabilização que turbinam a crise. Os problemas de desemprego e infraestrutura estatal que estavam por trás do levante de 2011 nunca foram resolvidos. E, então, veio a pandemia a jogar massas de população na pobreza - aliás, fator que têm sido o pano de fundo para revoltas em Cuba (contra a ditadura), e na África do Sul (contra a prisão do ex-presidente Jacob Zuma) e outros lugares. Muda o estopim de cada crise, mas o coronavírus e suas consequências econômicas são comuns.
A Tunísia tem dado uma resposta caótica à pandemia. As mortes em razão da covid-19 atingiram recorde para o país na semana passada, passando de 300 em 24 horas. A vacinação é lenta: apenas 13,5% da população foi vacinada com uma dose, e a metade com as duas doses.
Outrora vitrine da Primavera Árabe, a Tunísia pode se tornar exemplo de como os ventos mudam quando promessas não são cumpridas - e uma pandemia aparece no horizonte a alterar qualquer cenário promissor.