A Líbia é o exemplo mais bem acabado de como uma intervenção militar do Ocidente para desbancar um tirano pode ser danosa, por melhor que sejam as intenções.
Muamar Kadafi era um ditador sanguinário, um dos últimos dinossauros da Guerra Fria. Mas sua derrubada, liderada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) durante a Primavera Árabe, abriu caminho para a balcanização da nação, hoje fragmentada em territórios rivais sob poder de diversos grupos armados.
A Líbia tem tudo para se tornar a nova Síria: um presidente questionado, nacos de terra nas mãos de senhores das armas, atuação do grupo terrorista Estado Islâmico e, no meio de tudo isso, civis, desesperados, em fuga.
Depois que os ventos da Primavera Árabe cessaram, um dos senhores das armas, o general Khalifa Haftar assumiu grande poder, rivalizando com a autoridade legalmente constituída. Ele comanda tropas na região de Benghazi, exatamente onde começou a revolta contra Kadafi, em 2011. Seus homens avançam sobre Trípoli para derrubar Fayez Al-Sarraj, reconhecido pela comunidade internacional como presidente do país. O Ocidente prefere Al-Sarraj, mas, como quem luta contra o Estado Islâmico, é o general Khalifa é melhor mantê-lo por perto.
Os Estados Unidos lideraram a ação da Otan para derrubar Kadafi – a intervenção foi autorizada enquanto Barack Obama estava no Brasil, em 2011 –, mas hoje, com a estratégia de Donald Trump de recuar suas tropas –, há pouco interesse em abrir novo front. Resultado: porteira aberta para Vladimir Putin.
O Kremlin já recebeu tanto Khalifa quanto Al-Sarraj, mas prefere o primeiro. Por quê? Elementar: dinheiro, o general está sentado sobre as maiores reservas de petróleo do país. Há um embargo internacional de venda de armas à Síria, mas alguns países, entre eles a Rússia, podem estar entregando equipamentos para Khalifa para que suas tropas combatam terroristas. No cenário regional, Turquia e Argélia apoiam o governo em Trípoli. Já Egito e Arábia Saudita estão do lado do general.
Cerca de mil pessoas morreram em três meses de combates entre grupos rivais perto da capital líbia, Trípoli. Nos últimos dias, a situação ganhou ares de carnificina quando um bombardeio atingiu um campo de refugiados em Tajoura, na periferia de Trípoli. O ataque matou 53 pessoas, em ação que pode vir a ser julgada como crime de guerra. Cerca de 600 civis estavam no local e aguardavam para embarcar para a Europa.
Acrescentando mais contornos sírios ao drama líbio, o país se tornou rota de passagem de milhares de migrantes que fogem de conflitos no Chade, no Sudão e na Nigéria. Da Líbia, eles tentam cruzar o Mar Mediterrâneo – ou morrem na travessia ou são obrigados a voltar e padecer nos campos.
A Líbia simboliza a falência do sistema internacional e põe em xeque o princípio das Nações Unidas da responsabilidade de proteger. Com exceção do Timor Leste, o Ocidente sabe destruir nações, mas falha na reconstrução. Começar uma guerra é fácil. O difícil é terminá-la – que o diga o Iraque.