Como em uma tragédia aérea, os incidentes que colocam Cuba no centro do noticiário internacional não são resultados de apenas um fator.
Há o peso dos 60 anos de embargo americano, que foi robustecido quando o ex-presidente americano Donald Trump rasgou o projeto de reaproximação entre os Estados Unidos e Cuba, alinhavado durante a gestão Barack Obama. As 240 novas restrições impostas pelo governo do republicano ainda não foram levantadas pela administração do democrata Joe Biden, que, apesar das promessas de sua equipe de degelo com o regime cubano, tem se ocupado, nesses primeiros seis meses, em, primeiro, arrumar a casa.
No aspecto interno, as restrições impostas pelo governo de Díaz Canel para conter a pandemia levaram a economia, já fragilizada, ao colapso: sem o turismo, principal fonte de renda na ilha, o Produto Interno Bruto (PIB) despencou 11% em 2020. Há apagões diários, que obrigam os cubanos a racionar energia - o que significa, por exemplo, ficar sem ar-condicionado ou ventilador em pleno verão caribenho. E pior do cenário: os casos de covid-19 que não param de subir. No domingo (11), dia dos maiores protestos contra o regime desde 1994, o país registrou 6.923 infectados de um total de 238.491 desde o início da pandemia. Foram 47 mortos de um total de 1.537.
A situação mais dramática é na província de Matanzas, que vive hoje o que Guayaquil e Manaus viveram meses atrás - o colapso do sistema de saúde. A diferença é que, em Cuba, a ajuda externa não pode chegar por conta do embargo. Organizações internacionais pedem a formação de um corredor humanitário, algo que o governo tem rejeitado por negar a gravidade da crise sanitária, mas principalmente por temer que ele seja usado para ingerência externa, como o envio de armas, por exemplo.
Sem vacina, sem liberdade e sem dinheiro - com a queda também nas remessas em dólares que cubanos radicados do Exterior enviam para suas famílias, fonte de subsistência de milhares de pessoas -, os cubanos enfrentam filas em busca de comida e remédio, que estão em falta. Também exigem imunização. Os números do Our World in Data, da Universidade de Oxford, mostram que 26,83% da população foi vacinada com ao menos uma dose - e 15,47% com as duas. O país utiliza de forma emergencial os próprios imunizantes desenvolvidos na ilha - Abdala e Soberana 2, mas não é membro do Covax, consórcio da Organização Mundial da Saúde (OMS) que distribui doses a nações pobres.
Uma rápida observação nas fotos dramáticas dos protestos e da repressão de domingo (11) basta para se perceber que a maioria dos manifestantes é composta por jovens, cuja memória da Revolução, há 62 anos, é algo etéreo - alimentada apenas pela propaganda oficial e pelo relato de familiares mais velhos. No dia a dia, o que pesa é a falta de dinheiro no bolso, de comida na mesa e de liberdade.
Chama atenção a falta de unidade entre os manifestantes, mas percebe-se um movimento que se fortaleceu do interior - San Antonio de los Baños, Güira de Melena, Alquízar e Palma Soriano - para a capital, Havana. Há um certo ar de "Primavera Árabe", turbinado pela internet, que se popularizou na ilha desde 2018 - até então, a rede era muito lenta e cara. Não fosse a chegada da internet, o refrão "Patria y Vida" (assista abaixo) não teria sido ouvido no domingo (11) nos gritos dos manifestantes no Malecón. O vídeo com a música, que remete ao lema de Fidel Castro, "Patria o Morte", e faz uma crítica contumaz ao regime ("O povo se cansou de continuar aguentando" e "espera um novo amanhecer"), produzida por um grupo da Flórida (Gente de Zona), composta por Descemar Bueno e Yotuel Romero, e de Cuba, os rappers Maykel Osorbo e El Funky, chegou a 2 milhões de visualizações no YouTube em uma semana.
Aliás, há outros elementos culturais, além do rap, a incitar a população. O protesto começou em San Antonio de los Baños, cidadezinha de 50 mil habitantes próxima a Havana. É lá a sede da famosa Escuela Internacional de Cine y Televisión, berço do prestigioso cinema cubano. E as manifestações ganharam o apoio do Movimento San Isidro, coletivo de artistas formado em 2018, que desafiou o regime em 2020 contra um decreto que aumentava o controle estatal sobre atividades culturais.
Tudo isso, junto e misturado, corrobora para um mal-estar social generalizado aliado a um novo sopro de reivindicações que coloca o governo de Díaz Canel contra a parede. É um grande teste para o político, porque, desde abril, ele não é apenas o presidente do país, mas também o comandante do Partido Comunista.
Os gritos e o número de pessoas nas ruas desafiando as tropas chegam no momento em que, pela primeira vez desde 1959, não há um Castro no poder. Díaz Canel reagiu segundo a cartilha dos velhos comandantes: culpando os Estados Unidos de ingerência e convocando os "comunistas" a saírem às ruas. O quanto desse discurso ainda ecoa na população é duvidoso. As forças armadas responderam a seu chamamento, o que indica que, como fiéis da balança, ainda estão sob seu comando.
Em agosto de 1994, quando o regime enfrentou os piores protestos desde a Revolução, o contexto era diferente, mas os sintomas eram os mesmos. Faltavam combustível, comida e remédios. À época, a ilha sofria os reflexos do esfacelamento do grande irmão soviético, três anos antes. Centenas de pessoas buscaram refúgio em embaixadas de Havana e alguns grupos sequestraram embarcações para fugir para Miami. O "Maleconazo" terminou com repressão, mas também com um ato simbólico. Fidel em carro aberto foi até os manifestantes negociar em pessoa. Díaz Canel tentou fazer o mesmo no domingo (11) em San Antonio de los Baños. Ele não tem a mesma popularidade, capacidade de articulação e sobretudo história que as barbas de Fidel carregavam. Os próximos dias dirão se teve algum sucesso.