Há várias formas de ler Um Longe Perto – Histórias de um Jornalista Nesse Mundo que Dá Voltas, primeiro livro de Marcelo Lins. Depende de sua pretensão. Se você busca doses homeopáticas de cultura e história, a fim de compreender as intrincadas complexidades que levaram o planeta a guerras como do Vietnã ou dos Bálcãs, percorrerá as 240 páginas da obra, editada pela Agir, como quem assiste aos comentários de Lins sobre o noticiário internacional na GloboNews.
Com bom humor e uma cultura enciclopédica impressionante, o jornalista recorre ao didatismo a fim de não deixar o leitor sem compreender o emprego de uma determinada palavra estrangeira, a tradição de um povo distante ou os interesses por trás de uma estratégia política que, lá na frente, terá impacto na conjuntura global. A preocupação em contextualizar fatos ou simplesmente a etimologia de palavras aparece na explicação das expressões yuan e renminbi (as formas de nominar a moeda chinesa), nas diferenças entre correspondentes internacionais e redatores e na identificação do vestuário de um judeu ortodoxo em Jerusalém.
Ainda que seja uma obra leve, com o objetivo de “desanuviar”, conforme ele descreve seu livro, Lins não se furta de toques de erudição, que transparecem nas dezenas – e impressionantes – conexões que o autor faz em trechos de divagações, que chama de “tempestades cerebrais”. São muitas as referências – de autores como o escritor libanês Amin Maalouf e o bósnio Miljenko Jergovic – a reprodução de trechos de uma música francesa da década de 1970 de Renaud (Le Blues de la Porte d’Orléans).
Aliás, essa erudição que surge despretensiosa no livro é também característica das participações de Lins na TV, quando, ao vivo, ele é capaz de fazer a tradução simultânea de longos pronunciamentos do presidente Joe Biden, dos Estados Unidos, migrar para o francês Emmanuel Macron, emendar a fala do primeiro-ministro da Itália, Mario Draghi, e arrematar com o espanhol Pedro Sánchez (o jornalista é fluente em inglês, francês, italiano e espanhol, além de arranhar o catalão). E, ao fim de tudo, resumir cada um dos discursos e ainda comentar em cima. Sim, Lins, que também é apresentador, bate escanteio e cabeceia para o gol.
Um bom tradutor – e jornalista, diga-se de passagem – costuma construir um vocabulário rico graças a muita leitura, mas também a um repertório adquirido em diferentes experiências de vida, forjadas pelo caldo das culturas que se experimenta.
Eis aí a segunda forma de se ler Um Longe Perto: simplesmente deixando-se viajar, tendo Lins como guia turístico – ele foi redator do Guia Rio Botequim, um roteiro pelos melhores botecos carioca. Agora, por Hanói, Sharm el-Sheikh, Bangalore, Skopelos e Amsterdã, entre outras cidades, vai encontrando colegas repórteres, cinegrafistas e produtores que, curiosamente, refere apenas pelo primeiro nome, reúne-se com personagens históricos e heróis anônimos, passa por perrengues que depois viram boas risadas, experimenta cheiros e prova pratos. Lins revela-se andarilho, cidadão do mundo e sobretudo apreciador da comida local: do rizógalo grego (arroz doce) a iguarias, como escorpião frito chinês, o aspecto gastronômico aparece na obra, como em qualquer livro de viagem que se preze.
Os trabalhos jornalísticos se misturam com deliciosas – e por vezes emocionantes – histórias de bastidores, como um mergulho no Mar Morto, uma imersão em uma fábrica de incensos na Índia ou uma caminhada pela Sibéria, com o cuidado de evitar permanecer por muito tempo ao ar livre para não congelar e com o olhar atento diante da eventual aparição de lobos.
Por fim, a terceira forma de se ler a obra de Lins é buscando compreender a geopolítica do nosso tempo. Às vésperas de uma Olimpíada em meio à pandemia, é interessante conhecer como Atenas se preparou para os Jogos Olímpicos de 2004, aqueles em que o esporte brasileiro registraria recorde de medalhas de ouro em uma só edição. Há também uma mirada nas entranhas de três atores fundamentais do sistema internacional que, de uma forma ou de outra, afetam a política externa brasileira. Nos Estados Unidos, Lins cobriu as convenções dos partidos Republicano e Democrata, em 2016, momento importante do processo eleitoral americano que culminaria na vitória de Donald Trump. Na Índia, ele investiga os contrastes e desigualdades da ex-colônia britânica, as mazelas de seu subdesenvolvimento e a ascensão como polo de tecnologia da informação. E mergulha na China, potência para a qual o mundo olha com especial atenção à medida que o dragão dá passos largos para desafiar a hegemonia americana.
Seja pela curiosidade enciclopédica, pelo gosto de viajar em boa companhia ou para refletir sobre as relações internacionais, Um Longe Perto propicia momentos de prazer, algum riso, talvez uma lágrima, se você assim se permitir, e muitas reflexões sobre o mundo nesse estranho início de terceira década do século 21.