A prisão do ex-presidente Jacob Zuma mexeu com os brios dos apoiadores, muitos deles saudosos de anos de relativa melhora da condição de vida. Mas os maiores distúrbios na África do Sul desde o fim do apartheid não se explicam apenas pela reclusão do popular (e populista) líder, que esteve ao lado do grande Nelson Mandela nos cárceres da era da segregação racial. Pode-se dizer que sua reclusão foi o estopim, mas há causas subjacentes.
Primeiro, quem é Zuma? O político foi companheiro de luta de Mandela, com quem ficou 10 anos na prisão. Foi o terceiro presidente do país, consolidando uma era de líderes pós-apartheid, tendo sucedido a Thabo Mbeki, que veio depois de Mandela. Todos construíram carreira no movimento social e no Congresso Nacional Africano (CNA), partido que está no poder há 27 anos. Hoje, Zuma se mistura à própria cara do partido e domina sua máquina.
Durante seus nove anos no poder (2009-2018), o presidente manteve relações obscuras com as maiores empresas do país, com grande influência sobre o seu governo. Os Gupta, de origem indiana, por exemplo, construíram um império empresarial no setor de mineração, transportes, tecnologia e comunicação. A família fez fortuna com concessões públicas e é acusada de obter contratos do Estado e de oferecer cargos de ministros em nome do próprio presidente.
Zuma é acusado de ter recebido presentes como uma mansão em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, e de ter reformado sua casa de forma nababesca, com construção de uma piscina, um anfiteatro e uma área para criação de gado. Nem sua popularidade o poupou de críticas. Tamanha ostentação gerou revolta no país, onde metade da população vive na pobreza.
Em 2016, Zuma foi alvo de um processo de impeachment por corrupção, mas livrou-se de sair graças ao fato de seu partido ter maioria no parlamento (foram 232 votos contrários e 143 a favor). Pressionado novamente, em 2018, estava prestes a sofrer novo julgamento político, quando renunciou.
Depois de abandonar audiências judiciais ou de não comparecer às mesmas, Zuma se entregou em 7 de julho deste ano. Ele foi condenado a 15 meses de prisão por desacato à Justiça.
Foi o estopim da atual crise. Antes mesmo de o líder se entregar, apoiadores começaram a se reunir perto de sua residência em Nkandla, na província de Kwazulu-Natal, região onde Zuma nasceu. A fala de um manifestante, integrante da etnia zulu, à BBC ilustra o sentimento:
- Quando ele estava no comando do país, não havia problemas de eletricidade, nem confinamento nem covid-19.
De Kwazulu-Natal os protestos se espalharam para Gauteng, província onde fica Johanesburgo, capital econômica e maior cidade do país. A situação saiu do controle, e, em cinco dias de violência, são contabilizados 72 mortos e mais de mil detidos.
Os protestos são marcados por saques a mercados, lojas e depósitos de comida. Existe a ação de vândalos - e, sem dúvida, há alguns grupos criminosos infiltrados, conforme afirma o governo do atual presidente, o ex-vice de Zuma Cyril Ramaphosa), mas o furto de comida é sintoma de um mal-estar social mais profundo.
Eis o que estava latente: a crise política foi o estopim de uma revolta social que tem como explicação a desigualdade sul-africana. Há feridas do apartheid nunca cicatrizadas - na fragilidade das instituições e no abismo social.
O Brasil é uma nação desigual, mas, na África do Sul, a situação é bem pior. Enquanto aqui 10% da população detém 43% da riqueza do país, segundo o IBGE, lá, os 10% mais ricos ficam com 71%. No aspecto institucional, o julgamento de Zuma, por si só, é um teste para o Judiciário e sua capacidade e independência de analisar o caso de um político poderoso e carismático.
E, então, veio a pandemia a aprofundar essas mazelas. A África do Sul é o país mais atingido pelo coronavírus no continente onde a vacinação praticamente ainda não começou. A nação enfrenta a terceira onda da covid-19 e imuniza muito pouco - apenas 6,74% da população recebeu ao menos uma dose (no Brasil, foram 41,78%) e 2,46% recebeu a segunda injeção (14,81% no Brasil). As restrições devido ao fechamento da economia levaram a uma queda de 7% no Produto Interno Bruto (PIB) em 2020, e a taxa de desemprego chega a 32,6%.
A África do Sul era uma panela de pressão prestes a explodir.