O excesso de mistério sobre a visita do diretor da CIA, William J. Burns, a Brasília, na quinta-feira (1º), não contribui em nada diante de um ambiente político polarizado como o brasileiro. O novo presidente americano, Joe Biden, ainda não se encontrou com o brasileiro, Jair Bolsonaro, com quem tem francas divergências, e, nem, até então, havia enviado um alto funcionário ao principal aliado do Sul. E, do nada - sem que conste nas agendas oficiais -, o chefão da agência de inteligência americana, com histórico de atuação pouco ilibada no Cone Sul no século 20, desembarca na capital federal. Se fosse uma visita protocolar, não precisaria tanto mistério.
A coluna consultou a embaixada dos Estados Unidos no Brasil, questionando se houve encontro entre Burns e Bolsonaro, e perguntando sobre o motivo da viagem do funcionário americano. Aguardamos retorno.
Burns esteve na Colômbia nesta semana, antes de desembarcar em Brasília. Segundo o embaixador do país em Washington, Pacho Santos, tratava-se de uma missão "delicada e importante", conforme palavras usadas na entrevista à NTN24. Na pauta oficial, havia apenas uma entrega de lotes de doses de vacinas da Janssen contra a covid-19. Venezuela é sempre assunto - era com Donald Trump e segue sendo um elemento de desestabilização na América do Sul, mas não mais urgente.
No Brasil, o diretor da CIA foi acompanhado na quinta-feira (1º) pelo embaixador americano Todd Chapman. A comitiva passou pelo Palácio do Planalto, mas, na agenda oficial do presidente, não constava encontro com o funcionário americano.
A presença de Burns no país só começou a virar notícia no momento em que dois ministros, os generais Augusto Heleno (Gabinete Institucional) e Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil), confirmaram um jantar, previsto para as 19h30min, com o chefe da agência. Em tese, o encontro foi na residência do embaixador Chapman.
Obviamente, temas de inteligência não são divulgados publicamente. E, a despeito da instabilidade interna brasileira - que, a priori, não deveria dizer respeito a nenhum outro país a não ser ao próprio Brasil -, há temas de sobra que justifiquem a preocupação de Washington no continente.
Burns, 64 anos, é muito próximo de Biden. É um veterano do Departamento de Estado, tendo chegado a número 2 do órgão. Em 2015, no final do governo Barack Obama, foi fundamental para o acordo nuclear com o Irã - que Donald Trump rasgou assim que assumiu e que o atual presidente americano tenta reconstituir os pedados.
Em um vídeo publicado por um site simpático ao presidente brasileiro, segundo o jornal Folha de S. Paulo, Bolsonaro teria confirmado o encontro com Burns. Também teria citado a atual situação de crise em outros países da América do Sul.
- O interesse do Brasil por alguns poucos países é enorme. Alguns países dependem de nós, do que produzimos aqui. E esses países pensam 50, 100 anos à frente. E nós aqui, infelizmente, quando muito pensamos poucas semanas e poucos dias depois - disse em conversa com apoiadores.
Bolsonaro tentou demostrar preocupação com países como Venezuela, Argentina, Bolívia e até com o Chile - que é exceção entre as demais nações, porque tem um governo de centro-direita, enquanto os outros são regidos pela esquerda. Justificando, afirmou:
- Não vou dizer que isso foi tratado com ele (Burns), mas a gente analisa aqui na América do Sul como estão as coisas.
Ele esqueceu de citar o Peru, onde o candidato de esquerda Pedro Castillo é virtualmente vencedor da eleição de junho - o que alimentaria a gênese de uma onda progressista no subcontinente.
Afora arroubos, teorias de conspiração e tergiversação, a preocupação americana real - que dominou o governo Trump e migrou para Biden, porque esse é um interesse fundamental a doutrina americana, seja republicana ou democrata - com a América do Sul gira em torno da influência chinesa por aqui. No segundo semestre de 2021, deve ocorrer o leilão da rede de telefonia 5G, da qual a Huawei, empresa privada chinesa não foi excluída- até porque a China é a principal parceria comercial brasileira. Mas os Estados Unidos, que vivem com Pequim a maior disputa geoestratégica desde a Guerra Fria, ainda pressionam para que o Brasil não autorize a participação de tecnologia chinesa, alegando possível espionagem do país asiático.
A preocupação ganha contornos de urgência diante dos discursos demonstrados pela China no centenário do Partido Comunista Chinês, na quinta-feira (1º), em que ficou clara a ambição de Pequim de desafiar a hegemonia americana no século 21. E a América Latina é um dos principais campos de batalha. Se não há nada a esconder, não precisava tanto segredo em torno da visita do chefão da CIA ao Brasil.