Autor do livro "God save the queen - O imaginário da realeza britânica na mídia", o pesquisador Renato de Almeida Vieira e Silva explicou à coluna o significado da morte do príncipe Philip, marido da rainha Elizabeth II, pelo aspecto simbólico na família real, abalada pela recente saída do casal Harry e Meghan e de suas críticas ao círculo do Palácio de Buckingham.
Philip morreu nesta sexta-feira (9) no Palácio de Windsor de causas ainda não confirmadas oficialmente. Recentemente, ele havia sido submetido a um processo cirúrgico no coração.
O que a morte de Philip representa para uma família real que está enfrentando nova crise a partir das revelações de Harry e Meghan?
É uma perda muito sentida por conta da função que ele (Philip) vinha desempenhando ao longo de décadas, sendo consorte da rainha, mas alguém que todo mundo conhecia. Apesar de não ter sido rei por título, por um questão de limitação legal, ele desempenhou o papel ao lado dela, sendo seu braço direito para muitos assuntos. Isso também representou o amadurecimento dos dois, porque eram muito jovens (quando assumiram seus cargos). Eles amadureceram nas funções. Philp entendeu perfeitamente qual seria o seu papel e, evidentemente, algumas limitações que o cargo lhe conferia. Também ela (a rainha) estava assumindo (o trono) muito nova. Foram duas coincidências: o papel de Winston Churchill (então primeiro-ministro britânico) como tutor, que representou o papel de pai dela, e Philip. Ambos (Elizabeth e Philip) vêm de uma mesma linhagem - tinham uma formação muito parecida. Isso dava um certo equilíbrio, não era um "estrangeiro" que caia de paraquedas na realeza. Ele vinha de uma monarquia mais discreta, como era o caso da Grécia, mas ambos descendentes de um mesmo tronco, e passando por diferentes estágios de formação - ele como oficial de marinha com algum destaque, com medalhas por atos de bravura. Houve uma feliz junção para exercer o papel institucional com a força que a coroa britânica tinha e tem. Foi muito importante esse acasalamento, esse conhecimento dos dois. Ele dando o suporte necessário à rainha e, em alguns momentos, com certa modernização. Elizabeth II guardava ainda um freio muito mais tradicional. Philip ia de forma um pouco mais arrojada.
Embora coadjuvante, ele era uma figura bastante popular, não?
Sim, até por seu jeito de ser. Philip tinha todas as qualidades esperadas de um chefe de Estado. Ele representava um papel diplomático. Viajaram muito pelo mundo. Elizabeth II rodou o mundo, representando um papel de chefe de Estado. De certa forma, dava a ideia do alcance, até onde o Império Britânico atingia. Esse lado do soft power (poder suave) foi muito bem exercido. Em alguns momentos, ele era criticado por sua ironia. Mas ao mesmo tempo representava bem seu papel. Isso para os britânicos é fundamental. Do ponto de vista simbólico, se a gente pudesse resumir em uma palavra o código cultural britânico, eu definiria como classe. Ele tinha classe porque sabia ocupar a sua posição e fazer o que é esperado.
Philip era um homem acostumado ao comando naval e que tinha opiniões fortes sobre diversos temas. Ele foi mudando ao longo do tempo e entendendo o papel na realeza?
Foi um processo de assimilação. Em "The Crown", mesmo com licença de ficção, há momentos em que eles destacam muito bem isso: em que ele tinha seu jeito de ser, mas que sabia exatamente qual o seu papel institucional, seu senso de dever. Ele nunca falhou nesse aspecto. Evidentemente, também tinha uma disciplina militar quase espartana, o que terminou inclusive influenciando a criação dos filhos mais velhos. Tanto assim que a relação dele com o neto, Harry, foi sempre maior, porque ele também tinha algo parecido, não evidentemente a explosão temperamental, o espírito rebelde que Harry possui, mas também foi para o campo de luta (Harry esteve no Afeganistão), enquanto os outros cumpriram uma função na realeza.
Como era essa identificação com Harry?
Muito forte. A perda vai ser muito sentida. Tinham um diálogo muito próximo, maior do que Philip teve com seus filhos.
O funeral será o primeiro encontro de Harry com a família desde a entrevista que ele e Meghan deram à TV americana em que falaram de racismo. O que esperar?
Pode ter havido uma zona de atrito, acontece com as melhores famílias. Mas Harry e Meghan não deixaram de ser membros da família real. Não estão desempenhando papeis oficiais da família real. É uma diferença. E abdicaram isso.
É o papel institucional diferente dos laços de família.
Exatamente, e essa ligação é profunda. Ousaria dizer que é impossível que ele (Harry) falte à cerimônia fúnebre do avô. Será o grande quebra-gelo. Já se esperava por isso, mas de outra forma. Essa reconciliação seria quando Philip completasse cem anos (em junho) e quando haveria uma série de homenagens pelos 60 anos, caso estivesse viva, da princesa Diana (em julho). Mas terminou pelo caminho da morte do avô.
Não haverá funeral de Estado. Não veremos grandes multidões, como rainha-mãe. Isso por causa da pandemia ou devido à discrição que fazia parte do jeito de ser de Philip?
Ele pedia isso (discrição). Ele queria uma cerimônia fúnebre militar. Não como herói nacional, como de fato não o era. Mas com as honras militares. Ele será enterrado em casa. Já estava no castelo de Windsor, a capela de St. George (onde será sepultado) acolhe a própria rainha Vitória, o príncipe Albert e o pai e a mãe e a irmã da rainha.
Como Philip e a rainha vinham vivendo a pandemia?
De 2017 para cá, ele já tinha se liberado das atividades oficiais. Só aparecendo em raros compromissos de família. Ele optou por um auto exílio na Escócia. Mais recentemente, Philip voltou para Windsor, mas a saúde dele começava a se agravar. Windsor é um complexo gigantesco, que permite com alguma liberdade se transitar, mesmo com a pandemia. Ficaram reclusos, embora em uma propriedade daquele tamanho em que é possível passear por quilômetros sem ser importunado. Viviam em alas separadas, é comum na aristocracia. Nunca dormiram no mesmo quarto. A rainha sempre dormia e acordava sozinha. Eles tomaram a vacina (contra a covid-19), do ponto de vista simbólico foi muito importante naquele momento coletivo para o Reino Unido e depois veio o agravamento da situação de saúde de Philip. O estado dele estava muito grave. Eu achava que ele não sobreviveria à cirurgia, de uma complexidade imensa. Idade muito avançada. Essa morte também representa os dois corpos do rei: ele tem um lado sagrado, do institucional, e outro, humano.