O depoimento de um ex-militante gaúcho reforçará em março a denúncia que pode levar à primeira condenação, na Itália, de um militar brasileiro por crimes da ditadura que perdurou no Brasil de 1964 a 1985.
O juiz aposentado João Carlos Bona Garcia, que militou na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), foi convocado pela Corte de Assise, de Roma, para depor no processo em que foram denunciados 13 brasileiros por participação na Operação Condor, a união dos aparatos repressivos dos regimes militares de Brasil, Uruguai, Paraguai, Argentina e Chile nos anos 1970. Apenas um dos réus está vivo: o coronel reformado Átila Rohrsetzer, ex-chefe da Divisão de Informações (DCI), que funcionava dentro da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, durante os anos de chumbo.
Átila, hoje com 89 anos, foi denunciado pelo Ministério Público da Itália por violação de direitos humanos no caso do desaparecimento do ítalo-argentino Lorenzo Viñas, ocorrido em 26 de junho de 1980, em Uruguaiana, na Fronteira Oeste. Ele havia sido preso em 1974 por sua militância no movimento de esquerda peronista Montoneros, que defendia a luta armada na Argentina. Devido à perseguição política em seu país, Viñas e a mulher, Claudia Olga Allegrini, então grávida, decidiram buscar refúgio na Itália via passagem pelo Brasil. O rapaz embarcou em um ônibus em Santa Fé. A ideia era encontrar a esposa no Rio de Janeiro, de onde seguiriam para a Europa. Claudia, que viajou de avião, chegou ao Rio. Viñas foi detido ao cruzar a fronteira, no Rio Grande do Sul. Segundo Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, tudo indica que o jovem foi retirado do ônibus pela Polícia Federal brasileira com o apoio da Polícia Civil gaúcha. Seu corpo nunca foi encontrado.
O promotor italiano Ermínio Carmelo Amélio quer provar que Átila estava na cadeia de comando do sistema repressivo, tinha mando sobre o Departamento de Ordem Pública e Social (Dops) gaúcho e, portanto, seria responsável pelos crimes em sua jurisdição. O depoimento de Bona Garcia corrobora na tese da acusação. Então militante da VPR, o hoje juiz aposentado do Tribunal de Justiça Militar foi preso em 1970 e acusa Átila de ter sido o seu torturador.
- Ele torturava escutando música clássica, meio paranoico. Se deliciava, tinha prazer. Foi muito forte. No final da sessão de tortura, eu já não falava, estava completamente fora. Para teres uma ideia, o pessoal da polícia que foi me buscar no Dops estava chorando - conta.
Bona Garcia aguarda orientações práticas sobre o depoimento, marcado para 26 de março, e que deve ocorrer de forma remota - por telefone ou internet. A Corte de Roma também irá receber, por escrito, o relato do ex-governador de Minas Gerais Fernando Pimentel (PT), que foi preso com Bona Garcia e afirma ter sido interrogado duas vezes por Átila e também torturado com choques.
O processo na Itália começou em 1999, quando o procurador da Corte Giancarlo Capaldo instalou escritório em Buenos Aires para investigar a ligação da Operação Condor com o desaparecimento de Lorenzo e de outro ítalo-argentino, Horácio Domingo Campiglia. O primeiro depoimento de Krischke no caso foi naquele ano, na sede do consulado da Itália na capital argentina. Desde então, o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos tem municiado a Justiça italiana com documentos do Estado-Maior do Exército brasileiro (Centro de Informação do Exército) e do Serviço Nacional de Informações (SNI), que comprovam a articulação entre as forças de segurança das ditaduras para caçar opositores além das fronteiras nacionais. Também foi entregue à promotoria cópia do livro "Rompendo o Silêncio", de autoria de Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi do II Exército, em São Paulo. No capítulo sobre o Rio Grande do Sul, ele cita a atuação de Átila e a estrutura do DCI como parte do aparelho repressivo. Krischke esteve em Roma para depor no julgamento em duas ocasiões, em 2014 e 2017.
- Juntei muitos documentos do Exército mostrando que quem instaurou essa prática foi o Brasil. Descrevi a cadeia de comando - afirma.
Em uma das vezes, anexou uma cópia de uma entrevista concedida em 2007 pelo general Agnaldo Del Nero publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo. Nela, o ex-integrante da Seção de Informações do Estado-Maior do II Exército, em São Paulo, e ex-chefe da Seção de Operações do Centro de Informações do Exército (CIE) confirma que militares argentinos informavam os brasileiros sobre a chegada de militantes ao Brasil. "Quando se recebia essa informação, podia ser que o cara estivesse só de passagem ou ele vinha também aqui se incorporar a alguma ação, e a gente não sabia. Então, a prisão dele tinha de ser feita, pois não se sabia o que esse cara pretendia. E como a gente não matava, entregava", afirma Del Nero na entrevista.
Os promotores veem na afirmação uma evidência de que agentes do regime militar brasileiro prendiam militantes de outros países e os entregavam a autoridades de segurança das nações vizinhas.
A sentença deve sair este ano. Caso seja condenado, Átila, que atualmente vive em Santa Catarina, pode ser sentenciado à prisão perpétua. Mas a Constituição brasileira impede a extradição de cidadãos. Com a sentença condenatória, as autoridades italianas emitem, via Interpol, ordem de prisão. Caso o condenado viaje ao Exterior, poderá ser preso e entregue à Justiça italiana. A coluna tenta contato com a defesa do coronel, mas não obteve resposta até o momento.