Ditadores não choram. Muito menos os norte-coreanos. Seria impensável ver Kim Il-sung, o primeiro e eterno presidente da Coreia do Norte, ou Kim Jong-il, o sucessor, encherem os olhos de lágrimas como fez o herdeiro, Kim Jong-un, no sábado (10), ao pedir desculpas por seu desempenho à frente da nação mais fechada do planeta, mas cujas fissuras começam a aparecer.
O desfile por ocasião do 75º aniversário do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte era para mandar um recado ao mundo do suposto poder norte-coreano. A exibição de um gigantesco míssil intercontinental até acabou ganhando fotos em capas de jornais internacionais, como uma ameaça explícita aos Estados Unidos. Mas as lágrimas de Kim tiveram um efeito mais duradouro. Revelaram as fragilidades da ditadura, a única ainda comunista em essência, remanescente do século 20. A imagem do míssil acabou virando um tigre de papel.
Ditadores, sejam de esquerda ou direita, precisam construir suas narrativas a partir de mitos. Auxiliado por uma máquina de propaganda, o clã que manda e desmanda no naco de terra no norte da Península Coreana construiu o seu baseado na ideia de que seus líderes são guerreiros quase sobrenaturais. Kim Il-sung, por exemplo, era visto como gênio político e militar. Bravura é um valor. Tanto que, em sua biografia, consta que, aos oito anos, ele já se envolvera na luta pela independência.
O culto à personalidade do comandante da nação cresceu com seu filho, Kim Jong-il, pai do atual ditador. A biografia oficial afirma que ele nasceu na montanha sagrada de Paekdu. Tal momento, segundo a lenda, foi abençoado por uma nova estrela e um duplo arco-íris. Sua morte, em 2011, foi marcada por episódios "misteriosos", segundo a imprensa oficial: uma tempestade de neve parou de repente e o céu ficou vermelho sobre a montanha de Paekdu.
Kim Jong-un não fugiu da narrativa épica: uma das histórias mais curiosas - e pouco críveis - é de que ele já sabia dirigir aos três anos. Notável! Filho mais jovem de Kim Jong-il e pouco conhecido antes de assumir o poder na morte do pai, Kim dependia ainda mais dessa construção mítica para se afirmar no poder. Por isso, de tempos em tempos rugia. Como suposto líder impiedoso, foi talvez o ditador que mais mostrou-se ao mundo como uma ameaça, expandindo o arsenal de armas do país. Porém, boa parte da real ameaça representada pelo regime, não passa de bravatas.
A Coreia do Norte já domina a energia nuclear - mas entre ter uma bomba atômica e dispor de capacidade para lançá-la há uma diferença bastante grande. Enquanto a ditadura flexiona músculos, a população passa fome - segundo o Programa Mundial de Alimentos da ONU, 40% dos norte-coreanos necessitam de ajuda humanitária. Planos para comércio internacional, projetos de construção e outras medidas econômicas foram paralisadas devido ao fracasso das negociações com os Estados Unidos, que poderiam pôr fim às sanções internacionais. O país precisou fechar seu único acesso ao mundo por terra _ a China _ devido ao coronavírus. Os tufões destruíram boa parte das lavouras, colocando em risco o abastecimento de alimentos. E ninguém acredita que a pandemia não tenha chegado _ o governo insiste que há zero casos. Ou seja, enquanto você lê esse texto, a Coreia do Norte pode estar escondendo corpos de vítimas.
A própria saúde do ditador é questionada. Em abril, ele não participou, pela primeira vez, das festividades do aniversário do avô. Ficou sem aparecer por dias, levantando suspeitas de que estaria muito doente - especulou-se se estaria com covid-19 ou devido a complicações por obesidade e tabagismo. Até hoje, o regime não se manifestou oficialmente sobre as condições de saúde do líder.
Tudo isso ajuda a explicar a confissão do fracasso de Kim. Quase nunca sanções econômicas funcionam para derrubar ditadores - que o digam a Venezuela de Nicolás Maduro, o Iraque de Saddam Hussein e a Líbia de Muamar Kadafi. Mas, no caso norte-coreano, acelerado por outros fatores, como a pandemia e as tragédias ambientais, a pressão parece estar funcionando.