Em um país como a Argentina, que traz cicatrizes de desmandos autoritários, as imagens de policiais cercando a residência oficial do presidente, a Quinta de Olivos, remontam a tensos períodos do século 20 no país vizinho. Em plena pandemia, com a nação em crise econômica e social, a revolta das forças de segurança da Grande Buenos Aires contém ingredientes que, somados ao caos conjuntural, podem colocar em risco a democracia.
A manifestação começou na segunda-feira (7), depois que o presidente Alberto Fernández anunciou, na semana passada, um investimento equivalente a US$ 460 milhões para reforçar a segurança na província, onde a criminalidade cresceu 30%.
O projeto não previa aumento salariais para os policiais. Os agentes, que exigem reajuste de 56%, reclamam que a pandemia lhes tirou fontes extras de renda, como horas extras para atuar na segurança de eventos esportivos e artísticos.
As próprias autoridades reconhecem as reivindicações como legítimas. No entanto, cercar a residência do presidente não é a melhor forma nem lugar de protestar.
A oposição, de centro-direita, também repudiou a manifestação, que tem viés autoritário e põe em risco a institucionalidade da figura do chefe de Estado - concorde-se ou não com Fernández.
No final do dia, o presidente anunciou a criação de um fundo de fortalecimento financeiro para a província, que, em parte, servirá para repor os salários dos policiais.
Mais um novo indício de que a situação está muito delicada no país vizinho veio em seguida, com a reação da população. Enquanto Fernández falava na TV, milhares de pessoas batiam panelas nas janelas, ressuscitando os "cacerolazos", método que costuma contribuir para derrubar presidentes na Argentina.
O risco maior é o de grupos radicais dentro da corporação assumirem o espaço dos moderados, que vinham mantendo alguma negociação com o governo. A fala de Fernández elevou a tensão, a ponto de policiais chamarem para o conflito organizações extremistas ligadas ao kirchnerismo, como La Cámpora.
A Argentina, que viveu o mais longo confinamento do mundo (que salvou vidas, mas corroeu ainda mais a economia), vivia uma crise grave desde antes da pandemia. A inflação chega a 40%, e o coronavírus roubou os empregos de 280 mil pessoas.