Os 14 minutos do discurso virtual do presidente Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), nesta terça-feira (22), foi pragmático e moderado, bem diferente do tom agressivo do pronunciamento do ano passado, seu primeiro na tribuna internacional.
Na largada, um ponto positivo: uma referência às vítimas da covid-19.
- Quero lamentar cada morte ocorrida - disse o presidente, que nesses nove meses de pandemia raramente prestou condolências aos mortos no país, o segundo com maior índice do mundo.
Na sequência, sua fala pode ser dividida em dois tempos. O primeiro para o público interno. Bolsonaro reiterou sua visão de que é necessário tratar de dois problemas (vírus e desemprego) ao mesmo tempo. Para isso, destacou o auxílio emergencial a trabalhadores informais e desempregados, como "o maior programa de assistência aos pobres". Ao afirmar que "todas as medidas de isolamento foram delegadas aos 27 governadores" e dizer que, ao presidente, coube apenas o envio de recursos, deixou, nas entrelinhas, a culpa pelo fechamento da economia e suas consequências aos executivos estaduais, livrando o Planalto da decisão.
O agronegócio - "nunca o homem do campo trabalhou tanto" - foi o elo para a segunda parte do pronunciamento, esta sim direcionada ao público externo. A ênfase na agenda ambiental foi uma resposta às críticas internacionais devido aos incêndios na Amazônia e o Pantanal. Bolsonaro preferiu a defensiva. Mas, dentro de sua lógica segundo a qual a melhor defesa é o ataque, se disse vítima "de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal". Evitou citar a imprensa, mas se referia a ela. Preferiu explicitar supostos "interesses escusos que se unem a associações brasileiras".
Ao passar a ideia de que os focos de incêndios florestais estão dentro dos níveis anuais - o que é desmentido pelos dados do próprio governo -, Bolsonaro afirmou que "nossa floresta é úmida e não favorece propagação de fogo". Depois, culpou o "caboclo e o índio" pelos fogo na Amazônia. Sobre o Pantanal, o dedo foi apontado para a "alta temperatura local, somada ao acúmulo de massa orgânica em decomposição". Terceirizou os problemas. Uma pequena dose de humildade ficou por conta de comparar o tamanho da Amazônia ao da Europa Ocidental, para salientar o quão difícil é protegê-la.
Os grandes ausentes da fala - que teve forte influência da ala militar no Planalto, daí o pragmatismo - foram os ataques ao comunismo e ao globalismo, presentes no discurso do ano passado. Mas sobrou, como de hábito, para a Venezuela.
- Em 2019, o Brasil foi vítima de criminoso derramamento de óleo venezuelano - disse, chamando o vazamento na costa do Nordeste de "agressão ocorrida contra o Brasil".
O viés agressivo contra o regime de Nicolás Maduro foi um agrado a Donald Trump, que enviou na semana passada o secretário de Estado, Mike Pompeu, a Roraima, para falar grosso contra os bolivarianos. Outro mimo ao presidente americano foi o apelo pela reforma da Organização Mundial do Comércio (OMC), "adaptada à nova realidade internacional".
No momento em que o mundo olha para o Brasil com preocupação diante das sucessivas notícias negativas nos últimos meses, soou positivo o comprometimento do presidente com princípios basilares da Carta da ONU, com a preservação da ordem democrática e com ênfase no respeito aos direitos humanos, expressão que Bolsonaro citou pelo menos três vezes.
O discurso virtual - sem a presença física no palco da Assembleia Geral - favorece que líderes para a plateia doméstica, sem a pressão do olho no olho do plenário da ONU ou o risco de saídas de delegações no meio da fala. Para agradar a sua base eleitoral, Bolsonaro apelou à comunidade internacional ao combate ao que chamou de "cristofobia". A expressão, que a maioria dos delegados deve ainda estar tentando entender, está no mesmo nível de outras do vocabulário da ala ideológico-olavista - como globalismo, "gayzismo" (termo pejorativo para se referir às causas LGBT+) e outras. Bolsonaro também reafirmou que o Brasil é um "país cristão e conservador".
As duas referências eram dispensáveis. Primeiro porque o país não está em guerra religiosa. Ao contrário, orgulha-se de sua multiplicidade de culturas e miscigenação de credos. Segundo porque dizer que somos uma nação conservadora é reducionista e representa apenas o pensamento de parte da população.