De todas as vítimas das crueldades praticadas pelo grupo terrorista Estado Islâmico (EI), os yazidis são os mais odiados. Etnicamente, eles são curdos e misturam elementos de várias tradições, como o zoroastrismo, antiga religião persa, o Islã e o cristianismo. São monoteístas e pré-cristãos, acreditam que Deus é representado por sete espíritos - um deles, chama-se Melek Taus, ou Shaytan, o mesmo nome que o Alcorão, o livro sagrado do Islã, dá a Satanás.
Daí o ódio dos fanáticos que ocuparam, por anos, parte do Iraque e da Síria, estuprando mulheres, escravizando homens, decapitando jornalistas, incendiando cidades e destruindo relíquias históricas, como o Museu de Mossul. Onde o EI chegava e encontrava os yazidis, não havia clemência. Muitos homens foram executados, caso não se convertessem ao Islã, as mulheres eram vendidas como escravas e as crianças, obrigadas a lutar nas fileiras do terror.
Os yazidis permaneceram invisíveis ao mundo até agosto de 2014, quando hordas do EI atacaram Sinjar, matando e destruindo tudo o que havia pela frente. Mais de 200 mil pessoas dessa religião fugiram, outras 3 mil foram mantidos reféns dos jihadistas. A mais famosa yazidi capturada é Nadia Murad, ganhadora no Nobel da Paz, em 2018. Considerada infiel pelos fanáticos, foi sequestrada e violentada. Depois de conseguir fugir, ela, hoje, luta contra o tráfico sexual de mulheres.
Apesar de todo o sofrimento, essa minoria étnica é ainda pouco conhecida mundo afora. Sensibilizado pela luta desse povo, o fotógrafo paulista Marcio Pimenta, radicado há três anos em Porto Alegre, decidiu jogar luzes sobre o drama. Esteve no Iraque em 2016 para registrar a guerra contra o EI. Encantado com a resiliência dos yazidis, resolveu voltar no ano seguinte para documentar suas bravas mulheres e o ritual de batismo (ou rebatismo) das que sobreviveram. O resultado está no livro fotográfico "Yazidis", que ele está lançando pela Editora Artisan.
Na obra, dividida em três partes (front da guerra, convívio social entre os yazidis e retratos), o fotógrafo de 45 anos registra o horror do conflito, mas sobretudo aponta sua lente para a força do povo yazidi, que precisou rever seus dogmas para não desaparecer. Pela cultura desse grupo, mulheres que tivessem relações sexuais com homens de outra religião deixavam de pertencer a essa fé. Em um determinado momento, havia tantas yazidis vítimas de violência sexual que, se fosse mantido esse costume, não haveria mais povo. A força das imagens de Pimenta é acompanhada por um relato pungente do fotógrafo e de um texto do ativista yazidi Murad Ismail, ambos em português e inglês. Em entrevista à coluna, o profissional conta detalhes do trabalho, publicado em revistas como National Geographic e Public Radio International.
Por que você decidiu fazer um livro sobre os yazidis?
No Iraque, conheci uma jovem que trabalhava com uma ONG de apoio aos refugiados yazidis em Erbil, capital do Curdistão, onde eu estava hospedado. Eles não eram objeto de meu trabalho naquela primeira viagem, mas, nos passeios para conhecê-los, havia uma garotinha de uns cinco anos que ficava grudada em mim. Criou aquele carinho, e comecei a me interessar mais pela história do povo deles. De fato, eu nunca tinha ouvido falar dos yazidis. Mas ficou aquele carinho, uma curiosidade sobre eles. Fiz apenas algumas fotos, mas sem pretensão de publicá-las.
O seu foco era o front da luta contra o Estado Islâmico. Como foi mudar a perspectiva para o drama dos yazidis?
Eu queria fazer o que todos estavam fazendo (registrar a guerra entre os peshmergas, tropa curda, contra o EI). Quando voltei para o Brasil, com a experiência de ter vivido o conflito, comecei a pesquisar mais sobre o povo yazidi. Queria saber porque estavam sofrendo mais do que os outros. Aquilo gerou uma imensa empatia. Decidi voltar para guerra não mais para a linha de frente. Falei: "Vou me dedicar agora ao povo yazidi". A maioria das fotos dos yazidis no livro foram feitas na segunda viagem.
O que mais chamou atenção ao fotografá-los?
Foi a capacidade deles de adaptação à nova realidade. O que mais me sensibilizou é que, pela religião deles, uma mulher yazidi que tem uma relação sexual com um homem não yazidi perde sua condição, deixa de ser yazidi. Eles eram muito rigorosos com essa lei. Quando houve o genocídio, e as mulheres foram sequestradas e violentadas, tecnicamente deixaram de ser yazidi. Só que foram tantas, milhares, que ficaram com medo de que a própria etnia acabasse sumindo por não haver mais mulheres na comunidade. Então, eles criaram o rebatismo: as mulheres que conseguiram a liberdade voltavam para uma fonte, como se fossem crianças, para serem novamente batizadas e ganharem de novo a condição de yazidi. Era quase um ritual de purificação. Isso para mim demonstrou a capacidade transformadora deles. Tiveram de romper com o próprio preconceito. Falei: "Nossa, essa história precisa ser contada, de como se dá a resiliência". De como, muitas vezes, a gente precisa romper com convicções, dogmas que temos, para que possamos avançar. Porque, se eles não mudassem, iam sumir.
Aqui, no Brasil, os yazidis são ainda pouco conhecidos. O seu livro contribui para dar visibilidade a um povo praticamente invisível. Era esse também o objetivo?
Exatamente. Eles receberam muita atenção em 2014, quando houve a tentativa de genocídio. Os Estados Unidos, o governo Barack Obama, ordenou um ataque aéreo para diminuir o impacto (da perseguição). Isso chamou a atenção do mundo. Foi um momento histórico. Ali o mundo ficou sabendo que existia uma etnia chamada yazidi. Depois, teve o Nobel em 2018 para a Nadia Murad. Eles conseguiram se organizar e buscar direitos, reconhecimento internacional. Mas têm uma luz muito menor sobre eles em relação a outros povos.
Você convidou um deles, Murad Ismail, a escrever no livro. O que ele achou do seu trabalho?
É meu primeiro livro. Quando chegou, fiquei muito feliz. Depois, entrei em pânico, porque eu estava falando de um povo. E, por mais que eu tenha vivenciado a história deles, não sou historiador. E eu estava escrevendo e publicando de forma impressa sobre eles. Isso me deu um pânico, pensei: "Meu Deus, e se eles não gostarem do livro?". Ontem (quinta-feira), Murad Ismail me mandou um e-mail dizendo que amou a obra. Hoje, ele mora no Texas. Nadia Murad mora em Nova York. Eles são amigos, ele gerenciou a carreira da Nadia, durante três anos e agora continua como ativista. Falei também com marido da Nadia. Eles já receberam o livro e, nos próximos dias, vou saber o que acharam. Para mim, é o que falta para chancelar o livro.
Como conseguiu despertar a confiança especialmente das mulheres, sendo homem, para fotografá-las?
Houve uma coincidência. Antes de eu voltar, eu precisava estabelecer contato com eles. Eu precisava ir no centro em Lalish, onde havia o batismo. Precisava de permissão. Entrei em contato com a fundação Yazda, contei das minhas intenções, e eles foram superabertos. Quando cheguei lá (Erbil) e me apresentei, conheci a diretora, descobri que ela, que não é yazidi, tinha passado seis meses no Rio de Janeiro. Sabia um pouco de português. Isso criou empatia. Ela autorizou que eu fotografasse e disse que o principal motivo que estava permitindo que eu, homem, os fotografasse era porque estavam passando por lá muitos jornalistas que tiravam foto e iam embora. Não se preocupavam realmente em dar um destaque ao povo yazidi. Para eles, eram apenas mais um sujeito da guerra. Ela disse: "Você foi o primeiro que afirmou 'vou ai para fotografar vocês'". Tive toda permissão, conversei muito com as mulheres. E também a questão do respeito. A capa do livro é de uma menina de costas, que não queria aparecer, mas queria falar. Tirei a foto dela de costas e acabou virando a capa do livro: uma jovem com um enfeite de coração no cabelo.
O livro está dividido em três partes: front, convívio social e depois os retratos. Por que você optou por esse compartilhamento?
Dividi assim para dar primeiro o contexto da guerra, como se fosse um filme, localizar onde esse povo está. Um filme sempre abre com o panorama geral, para localizar o espectador. Isso foi até uma crítica de vários editores de fotolivros que consultei: "Você tem de começar com a fotos das mulheres". Mas eu queria que as pessoas entendessem onde elas estão, antes de falar delas. Por isso, comecei o livro com fotos de front, depois de convívio social e finalmente com imagens do batismo.
Como adquirir
Yazidis, de Marcio Pimenta
Editora Artisan
Preço - R$ 100
Onde comprar - No site da editoria (aqui)