A mudança no primeiro escalão do governo francês no último dia 8 trouxe à tona não apenas a ascensão meteórica de um político até pouco tempo atrás desconhecido do grande público como também lançou luzes sobre uma visão alternativa à necessidade do confinamento da população para conter o coronavírus.
Jean Castex, o novo primeiro-ministro de Emmanuel Macron, surpreendeu o mundo ao afirmar, na primeira entrevista que concedeu após assumir, que, diante de uma segunda onda da pandemia, a França não adotaria novo lockdown.
O país sofreu um dos maiores traumas de sua história, com mais de 30 mil mortes por covid-19. Acredita-se que nas oito semanas de confinamento, o lockdown pode ter salvo milhares de vidas. Mas Castex, que agora ocupa o cargo mais importante da 5ª República depois de Macron, o custo econômico, social e até psicológico na vida dos cidadãos foi altíssimo.
- Meu objetivo é preparar a Franca para uma possível segunda onda, preservando nossa vida cotidiana, nossa vida econômica e social - disse, em entrevista à RTL - Mas não vamos impor um bloqueio como o fizemos em março passado, porque aprendemos que as consequências econômicas e humanas de um bloqueio total são desastrosas. Por isso, a partir de agora, qualquer fechamento de negócios ou pedidos de confinamento em casa serão cirúrgicos para áreas específicas.
Castex não é um negacionista da gravidade do coronavírus e está ainda mais longe de figuras como Kim Jong-un, da Coreia do Norte, ou Daniel Ortega, da Nicarágua, para os quais a vida seguiu quase normal no país, apesar da tragédia da covid-19. Ele tem origem na tradição humanista das melhores escolas da França. Também não limita seus argumentos à dicotomia proteger a saúde x salvar a economia. Até por estar apenas há alguns dias no novo cargo, Castex evita publicamente questionar a estratégia do chefe, Macron, mas um olhar apurado sobre documentos que ele assinou, entre os quais os dois planos para o desconfinamento da França que foi chamado a construir, um de 68 páginas, outro de 28, permite observar uma postura crítica ao lockdown, que pode ter impacto importante nas convicções globais sobre quarentenas como estratégia de contenção do vírus.
Em um dos relatórios, ele argumentou que a Franca deveria considerar a possibilidade de repensar a situação de emergência no caso de um aumento dos casos. Castex, com experiência na gestão de hospitais, entende que o longo bloqueio tem efeitos negativos, como o fato de impedir que crianças frequentem as escolas. Além disso, ele questiona os danos psicológicos que podem advir da falta de visitas entre familiares e amigos. No primeiro texto, no qual estabelece os fundamentos para a reabertura da economia, ele afirma: "A eficácia do confinamento não foi correspondida". E passa a listar uma série de impactos que as oito semanas tiveram na vida privada e social dos franceses. Do ponto de vista de saúde, o documento concluiu que o lockdown levou muitos cidadãos a adiarem o tratamento de outras doenças - uma queda significativa nas consultas com clínicos gerais (-40%) e especialistas (-50%) -, além da redução na venda de vacinas e o aumento do sofrimento psicológico, como sintomas de ansiedade e sentimento de isolamento. Outro efeito colateral foi o aumento da violência doméstica:"confinamento não pode ser sustentado a longo prazo", vaticina.
O agora ministro afirma que a medida drástica revelou desigualdades sociais, gerando problemas para populações carentes, que tiveram de conviver em "moradias pequenas e, às vezes, insalubres". O texto também salienta a evasão escolar como subproduto do lockdown: "Estima-se que entre 5% e 8% dos alunos que, apesar dos esforços de professores para garantir a continuidade pedagógica, perderam todo o contato com a educação", diz.
No aspecto econômico, o relatório é ainda mais contundente. Segundo ele, "o confinamento derrubou toda a economia". Estima-se em 35% a perda da atividade econômica na França, com fechamentos de comércio, construção civil, indústria e aumento do desemprego. O documento afirma ainda que, apesar das medidas do governo para combater a crise econômica, o confinamento provavelmente terá como efeito "acelerar o número de falências de pequenas empresas e enfraquecerá a longo prazo o aparato produtivo". E acrescenta: "Se essa situação continuar, estaríamos nos privando dos meios para financiar nossos serviços públicos em condições normais, incluindo serviços de saúde e, em especial, serviços hospitalares, o que seria particularmente prejudicial".
- O período de confinamento, se salvou muitas vidas, também resultou em uma restrição importante e pesada da vida social, cultural ou espiritual dos franceses.
Chamado a reconstruir o país
Castex, apelidado de "Monsieur Déconfinement" ("Senhor Desconfinamento"), foi chamado a construir a arquitetura da reabertura do país em abril. Aos poucos, ganhou a confiança de Macron. Depois da derrota do partido do presidente, En Marche! (Em Marcha!) nas eleições municipais - boa parte em razão da gestão da pandemia, que muitos franceses acreditam que foi "catastrófica" -, o presidente o elevou ao cargo de primeiro-ministro, em substituição a Edouard Philippe. Castex é considerado um homem de diálogo, tanto que chefiava a interlocução entre ministérios para a organização dos Jogos Olímpicos de 2024, em Paris. Mas nunca atuou na linha de frente de um governo - até assumir, era prefeito de Prades, aos pés dos Pirineus. Nos bastidores, foi homem de confiança dos ex-presidentes conservadores Jacques Chirac e Nicolás Sarkozy.
O chamado ao cargo é uma mudança drástica de posição do governo Macron, que sempre se caracterizou como um político de "centro centro". Castex, do Partido Les Républicans (Os Republicanos, o mesmo de Sarkozy), está à direita do presidente. Nos bastidores, entende-se que ele é o homem a reconstruir a economia do país. Há muito a fazer: a recuperação econômica será difícil e o presidente perdeu terreno em todas as frentes que estavam razoavelmente controladas: taxa de desemprego em declínio, mais investimento e crescimento econômico foram abocanhados pela pandemia. Macron precisa recomeçar o governo a menos de dois anos da eleição (ele ainda não confirmou se será candidato). A mudança de rumo ocorre em momento conturbado: o país já enfrentava, antes do coronavírus, crise social, com protestos gigantescos dos giles jaunes (coletes amarelos) e greves contra a reforma da previdência.