Transformar em mesquita a Hagia Sophia (Sagrada Sabedoria, em grego), patrimônio mundial e símbolo até hoje da Turquia secular, é a medida mais radical já tomada pelo presidente turco Recep Tayyp Erdogan em seu afã de islamizar o país.
Esse processo começou em 2003, quando o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) chegou ao poder e foi acelerado desde a tentativa de golpe de 2016, na qual Erdogan se aproveitou de uma ameaça que até hoje se discute se foi real ou inventada para endurecer o regime - para muitos, o ato número 1 de uma ditadura no país.
Sua tentativa de impor uma agenda islâmica na sociedade turca vem em forma de pacotes que, de tempos em tempos, destroem as instituições democráticas e o secularismo. Em 2017, ele derrubou o veto ao véu islâmico em órgãos públicos e escolas. Antes, o país aprovou uma lei que restringe o comércio de bebidas alcoólicas. No mesmo ano, o casamento civil deixou de ser o único legal no país, com a aprovação de uma lei que dá igual reconhecimento a cerimônias religiosas.
A primeira vez em que estive na Turquia, em 2006, percebia-se uma sociedade a poucos passos de ingressar na União Europeia (UE) e muito mais ocidentalizada do que hoje. Voltei 10 anos depois, a caminho do Iraque e no retorno de Bagdá, às vésperas da quartelada de 2016. Nessa nova viagem, já eram perceptíveis retrocessos. Colegas jornalistas turcos comentavam que mulheres começavam a evitar usar roupas curtas nas ruas para não serem importunadas. Invariavelmente, casais que se beijavam em público eram advertidos, mesmo em locais turísticos como a Praça Sultanahmet, entre a Hagia Sophia e a Mesquita Azul, dois dos lugares mais lindos que meus olhos já viram.
Mas o que está por trás dessa medida de Erdogan? A Turquia, antes de ser um Estado tal qual o conhecemos, fazia parte do Império Otomano, que ruiu após o fim da Primeira Guerra Mundial. Mustafa Kemal Atatürk erigiu em 1923 a Turquia moderna a partir das cinzas da teocracia otomana: submeteu a religião ao Estado e limpou todos vestígios islâmicos das forças armadas. O objetivo consistia em modernizar o país e conceder aos turcos uma identidade nacional em detrimento da influência árabe.
Hagia Sophia é símbolo de uma cidade que, pela localização e história, encarna as disputas milenares entre Ocidente e Oriente. Istambul é a antiga Constantinopla (antiga capital do Império Romano do Oriente, Bizantino), que mudou de mãos em vários momentos, até ser dominada pelos turcos otomanos em 1493. A cada novo comando, Hagia Sophia se tornava sagrada para a religião no poder - basílica bizantina, mesquita (islâmica) e, sob o comando do secular Atatürk (que significa "Pai dos Turcos"), museu, desde 1934. Aliás, uma das representações mais interessantes no interior do prédio é poder ver símbolos do Islã e do cristianismo lado a lado.
Ao entregar o prédio aos muçulmanos de novo, Erdogan atende a uma vocação ultranacionalista, que traz embutida uma antiga aura do Império Otomano e agrada a sua base eleitoral. Prova disso foi o próprio discurso do Sultão, como é conhecido, no qual assinou o decreto e fez referência à tomada de Constantinopla, há 527 anos atrás. Também atende a uma porção da população conservadora do eleitorado, do qual o AKP, seu partido, é cada vez mais dependente, principalmente depois de derrotas recentes em eleições para as prefeituras de Istambul e da capital, Ancara. Além de Hagia Sophia, outras três basílicas-museus bizantinos - foram transformadas em mesquita nos 17 anos em que ele está no poder, unindo-se os períodos como premier e presidente. Por fim, a Turquia se afasta do Ocidente e caminha a passos largos rumo à islamização da sociedade.