Por si só, a bandeira antiga rubro-negra da Ucrânia, que apareceu no protesto de apoio ao presidente Jair Bolsonaro em São Paulo, no domingo (31), não é fascista. Trata-se de um símbolo histórico, utilizado na Idade Média. O preto representa a terra da Ucrânia. O vermelho, o sangue derramado por seu povo na luta de séculos por soberania, liberdade e independência.
O brasão em forma de tridente foi levado pelo príncipe Vladimir, em 988, quando o território tornou-se cristão. É um símbolo usado na mitologia grega, que, posteriormente, foi convertido na santíssima trindade para os cristãos.
A bandeira rubro-negra é utilizada desde o século 16 pelos cossacos ucranianos na luta contra invasores estrangeiros. Hoje, o símbolo nacional mudou: é amarelo e azul (que também aparece nos protestos brasileiros). O tridente permanece como brasão oficial do Estado ucraniano.
Esta é a versão oficial sobre a bandeira, esclarecida pelo embaixador da Ucrânia no Brasil, Rostyslav Tronenko.
Entretanto, existe uma associação da bandeira com grupos de extrema direita desde a Segunda Guerra Mundial. Ela virou símbolo do exército insurgente da Ucrânia, um movimento nacionalista formado em 1941 e que se aliou à Alemanha de Adolf Hitler até a invasão da Ucrânia por tropas nazistas, dois anos depois. Com a derrota nazista, a bandeira foi usada por tropas ucranianas em lutas contra a URSS e a Polônia. Ao fim de tudo, a Ucrânia, é importante lembrar, foi anexada pelos soviéticos.
O símbolo só reapareceu no contexto da crise vivida no país em 2014, quando uma revolta contra o presidente Viktor Yanukovytch, aliado da Rússia (do presidente Vladimir Putin), terminou em golpe. Organização paramilitar criada em 2013, o Pravyi Sektor (Setor Direito, em português), era um dos principais grupos envolvidos nos combates de rua. Com a queda do governo, ele tornou-se partido político legalizado na Ucrânia.
O movimento, de ultradireita, se apropriou do que a bandeira representa e cresceu em popularidade, principalmente depois da anexação, pela Rússia, da região da Crimeia (então território ucraniano). A Rússia considera a organização terrorista, mas o governo da Ucrânia diz que isso é parte da propaganda do Kremlin para “semear invasões, ódio, xenofobia e antissemitismo” para enfraquecer sua democracia.
O Pravyi Sektor surgiu, para o governo ucraniano, em reação da sociedade contra interferência russa nos assuntos internos da Ucrânia. Sua representatividade é mínima - o partido obteve 2% dos votos nas últimas eleições, em 2019, e ficou de fora do parlamento.
Outro grupo de viés nacionalista, fascista, e que atuou no golpe contra os russos em 2014 é o chamado Batalhão Azov. Ele foi incorporado à Guarda Nacional ucraniana após a vitória dos revoltosos contra Moscou. Esse grupo se apropriou da bandeira e busca paralelo histórico nas unidades de resistência à URSS que lutaram ao lado da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Seus integrantes volta e meia aparecem com bandeiras nazistas no combate contra os separatistas pró-Moscou no leste da Ucrânia.
Aqui, existe um elo brasileiro - e no Rio Grande do Sul. O conflito entre Ucrânia e Rússia gerou ações de recrutamento de lutadores e simpatizantes no Brasil, conforme revelou o Grupo de Investigação da RBS (GDI) em 2017. Um italiano de extrema direita teria atuado como caçador de militantes entre os gaúchos para as organizações Batalhão Azov e Misanthropic Division. As duas são pró-Ucrânia, nacionais socialistas e nasceram para enfrentar as tropas russas e separatistas em 2014. Parte de seus membros é antissemita e defensora da supremacia racial. Pelo menos um gaúcho esteve em 2014 na Guerra da Ucrânia, onde recebeu treinamento militar, aprimorou habilidades para fabricar bombas caseiras e participou de combates. Outros rumores sobre ligações entre a extrema direita brasileira e a ucraniana surgiram naquele ano. A Polícia Civil gaúcha encontrou material alusivo aos europeus em batidas dadas contra grupos neonazistas.
No Brasil atual, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) chegou a defender a “ucranização do Brasil”, ao reafirmar a necessidade do combate a partidos políticos corruptos. Também citou o Pravyi Sektor. Silveira ficou conhecido por rasgar, na campanha de 2018, placa em homenagem à vereadora assassinada Marielle Franco (PSOL-RJ) e foi intimado a depor no inquérito das fake news. A Ucrânia também surge no discurso da ativista bolsonarista Sara Giromini, que participa do grupo de radicais 300 do Brasil, cuja bandeira é a intervenção no Legislativo e no Judiciário. Ela tuitou em 20 de abril que havia sido treinada na Ucrânia e também defendeu a “ucranização” tropical.
O que querem dizer esses políticos com “ucranização” é uma incógnita. Seria uma guerra civil? Uma divisão do território nacional, como o termo “balcanização” ficou conhecido nos anos 1990? Ou a formação de milícias, como na Ucrânia, para a defesa do governo? São questões em aberto.
A propósito, a despeito de tentativas de aliar a imagem da Ucrânia à de um país neonazista ou fascista e antissemita, a nação teve, no poder, um primeiro-ministro, Volodymyr Groysman, e continua tendo um presidente, Volodymyr Zelensky, judeus.