Cabelos brancos compridos, por vezes desgrenhados, barba espessa e um grande anel de caveira no dedo mínimo direito. Didier Raoult, não fosse o jaleco branco, poderia passar por um guitarrista recém saído de um show de rock dos anos 1960. Em quase nada lembra o estereótipo de um médico. Quando fala, vocifera. Lembra o dr. Brown, em De volta para o Futuro.
Nascido em 1952 em Dakar, no Senegal, filho de um militar e de uma enfermeira, o Raoult é especialista em infecções e doenças tropicais, formado pela Universidade de Marselha, na França. Tem uma longa carreira como pesquisador. Mas só se tornou conhecido do lado de cá do mundo – e fora da academia – após publicar um estudo duramente questionado pela comunidade científica internacional e cuja ressonância o presidente Donald Trump e setores conservadores nos Estados Unidos se encarregaram de amplificar.
Raoult é o principal cientista por trás da defesa do uso da cloroquina e seu derivado, a hidroxicloroquina, no tratamento de pacientes com coronavírus. Desde que apresentou seu estudo, tem sido considerado por muitas pessoas um gênio. Por outras (e aí estão incluídos ex-colegas e boa parte dos pesquisadores), um charlatão.
Tudo começou no início de janeiro, quando ele realizou um teste no Hospital Universitário Méditerranée Infection (IHU), em Marselha, com 24 pacientes. Segundo dados apresentados pelo pesquisador, 75% dos infectados com o vírus se curaram e não poderiam mais transmitir o Sars-CoV-2 após seis dias de tratamento, enquanto apenas os 25% restantes continuaram tendo testes com resultado positivo e sendo contagiosos. Como base de comparação, ele apresentou um outro grupo de pessoas, das cidades de Nice e Avignon, que não foi tratado com o remédio e teve como resultado apenas 10% de curados no mesmo período.
Em 25 de fevereiro, Raoult defendeu publicamente o uso do medicamento. A essa altura, a China era engolida pela covid-19. Fazia quatro dias que a Itália confirmara a primeira morte.
Raoult tornaria-se uma espécie de apóstolo da hidroxicloroquina. Menos de um mês depois, em 20 de março, seu trabalho foi publicado no International Journal of Antimicrobial Agents. Mas seus experimentos já chamavam a atenção graças à forte presença nas redes sociais. Daí para um artigo no site de extrema-direita americano Breitbart foi um pulo. Em 16 de março, estava na Fox News e, três dias depois, no pronunciamento de Trump.
As contestações ao trabalho do médico começaram quando colegas do Centro de Pesquisas Epidemiológicas e Estatística Sorbonne Paris Cité e do Hospital Saint-Antoine pediram cópia dos dados brutos da pesquisa, mas não receberam. Uma das principais contestações de pesquisadores é a metodologia, a começar pelo número baixo da amostra.
Para seguidores, Raoult ganhou ares de gênio louco contra um sistema que não o dá ouvidos. Na França, ele recebe o apoio dos extremos do espectro político, da extrema-direita de Marine Le Pen à extrema esquerda de Jean-Luc Melenchon. Mas sua glória foi mesmo a defesa de sua tese por Trump, cuja tese em seguida passou a ser também a bandeira do presidente Jair Bolsonaro.
Diante da repercussão de seu trabalho em meio a uma humanidade que espera ansiosa por um remédio milagroso, franceses fizeram uma petição online para que o uso da cloroquina fosse ampliado no tratamento de covid-19 no país. A França adotou protocolo semelhante ao Brasil sobre o uso do medicamento, só administrado em pacientes graves. Com o apelo, Emmanuel Macron foi a Marselha na quinta-feira ouvir o que o médico tinha a dizer. Além da pesquisa com os 24 pacientes, Raoult mostrou outras duas experiências ao presidente. A última, conforme o jornal Le Échos, contou com 1.061 pacientes, 973 dos quais teriam se curado. O comitê de ética do Centro Nacional de Pesquisa Científica criticou, sem citá-lo, que “em nome do pragmatismo da urgência, as exigências do método científico e dos procedimentos usuais estão sendo ignoradas”.
O sucesso de Raoult não tem bases científicas. Na Suécia, hospitais suspenderam o medicamento devido a efeitos colaterais que podem levar a infarto. No Brasil, estudo em Manaus foi interrompido pelo mesmo motivo.
Prêmios e polêmicas
Diretor do Instituto Hospital Universitário Méditerranée Infection (IHU), Didier Raoult tem, até aqui, uma carreira dividida entre prêmios e polêmicas - entre elas, teses negacionistas. Após o surto de sars em 2003, ele foi contratado pelo governo francês para compilar um relatório sobre os riscos do terrorismo biológico e escreveu um artigo sobre a falta de preparação do sistema de saúde para lidar com uma pandemia. Em 2010, ganhou uma das maiores distinções científicas da França, o INSERM Grand Prix, concedido a cientistas que fizeram “notáveis progressos no campo da fisiologia humana”.
Raoult possui trabalhos importantes publicados sobre um vírus gigante descoberto por sua equipe e sobre bactérias ligadas ao tifo. Mas, em 2006, ele e sua equipe foram suspensos por um ano pela American Society for Microbiology, nas revistas editadas pela sociedade, por suspeita de fraude. O caso foi revelado pela revista Science, em 2012.
Em 2018, Raoult publicou o livro La Vérité sur les vaccins (A Verdade Sobre as Vacinas) e, de novo, atraiu críticas. Na obra, ele questiona a política de vacinação obrigatória da França. Em artigos na revista Le Point, entre 2013 e 2014, ele também questionou evidências do aquecimento global.