Pandemia de coronavírus, crise nos mercados globais e queda no preço do barril do petróleo que não se via há 30 anos. A semana que o mundo jamais vai esquecer começou com um susto vindo do Oriente Médio: a decisão da Arábia Saudita de aumentar sua produção de petróleo para cortar preço.
A estratégia era vista como necessária pelos sauditas para fazer face à queda dos preços provocada pela crise do novo coronavírus, que afeta a procura por combustível para transportes, em particular na China. Como a Rússia de Vladimir Putin não aceitou, os sauditas decidiram retaliar, esmagando ainda mais os preços.
Teve início uma queda de braço. A Rússia gasta mais do que os sauditas para extrair petróleo. Nos anos 1980, os sauditas derrubaram os preços causando danos severos à economia da então União Soviética e contribuindo para a escassez de alimentos no país.
A disputa ocorre em um momento em que o Kremlin aumenta sua influência no Oriente Médio, por meio do seu aliado, Irã, que disputa com a Arábia Saudita a hegemonia regional. Putin sustentou o ditador Bashar al-Assad no poder na Síria e aproveita a oportunidade aberta pelos Estados Unidos, que pretendem retirar forças da área.
Na mesma semana, à medida em que o coronavírus avançava para todas as nações da União Europeia, cruzava o Atlântico e colocava o Brasil e o Rio Grande do Sul no mapa da doença, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretava pandemia.
O covid-19 e a geopolítica se conectaram. Pandemias são crises que não estão circunscritas às fronteiras nacionais. Por isso, põem em xeque as relações internacionais. Ficam explícitas visões de mundo divergentes: tomadores de decisão isolacionistas, que defendem medidas securitárias, de fechamento de fronteiras, e os que propagam a cooperação, união de esforços e protocolos.
Donald Trump, que negou dados científicos, desdenhou da doença nos Estados Unidos, foi à TV anunciar medidas de contenção. Na mais surpreendente, suspendeu todos os voos procedentes da Europa (com exceção do Reino Unido) com destino ao território americano. A desculpa era o coronavírus, mas, ao não consultar os aliados, passou a ideia de retaliação. O mercado, que já não andava bem por conta das queda-de-braço entre o Kremlin e Teerã e o avanço da doença, foi à loucura: bolsas de valores pelo mundo despencaram ainda mais.
Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, com tema na área de segurança internacional, e mestre em National Security por Georgetown University, o pesquisador e professor da ESPM-SP Gunther Rudzit explica, em entrevista à coluna, a guerra mundial do preço do petróleo e as implicações da decisão saudita que abalou os mercados em uma semana já tensa devido à expansão global do coronavírus.
O que a Arábia Saudita ganhou ao aumentar a produção do petróleo?
É necessário dissociar a relação militar da econômica. Podemos pensar: a Arábia Saudita, ao derrubar o preço do petróleo, não está prejudicando também as empresas americanas (os EUA são aliados dos sauditas)? Está. Mas amigos amigos, negócios à parte. Essa é a complexidade do mundo hoje. Na época da Guerra Fria era muito mais fácil, porque um país era aliado político e econômico de outro. Hoje, não. Na dimensão da segurança, pode ser aliado dos EUA, mas, economicamente, a Arábia Saudita tem seus interesses, como manter o preço do petróleo estável mais alto. A Arábia Saudita, como principal líder da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo, que reúne 13 dos maiores produtores), está pensando no médio e no longo prazos. Primeiro, nos próprios orçamentos. Segundo, está pensando em manter um preço não muito baixo nem muito alto, para não alavancar energias alternativas. Foi justamente por causa do pico de 2008, quando o barril do petróleo chegou a bater em US$ 147,50, que levou os americanos a desenvolverem a extração de petróleo de xisto e viabilizou o pré-sal no Brasil. A Arábia Saudita aprendeu com isso. E já aprendeu que, ao derrubar o preço do petróleo, pode prejudicar momentaneamente a indústria do xisto nos EUA. Mas capitalismo americano consegue se reinventar. Algumas empresas quebraram, faliram, houve renegociação de dívidas, o governo interveio, e com os preço mais ou menos estável, voltaram a operar. O que Vladimir Putin está querendo, por sua vez, é prejudicar de vez essas empresas para que o governo americano volte a ser dependente do petróleo. Com o preço do petróleo tão lá embaixo, essas empresas americanas vão quebrar, na estratégia de Putin.
A medida unilateral de Trump de cancelar voos da Europa ajudou (a piorar a situação). A instabilidade nos mercados é tão grande que é nebuloso saber quem está ganhando nessa briga entre Arábia Saudita e Rússia.
E os EUA terão de voltar a importar do Oriente Médio?
Voltando a importar, você tem o governo americano dependente (do petróleo do Golfo), não pode ter presença em outras regiões, tem de dividir os meios. Com tropas e atenção dos EUA no Golfo, não terão tantos recursos para colocar no Leste Europeu, que é o que interessa à Rússia. A Ucrânia é só a ponta de lança. Todos os países bálticos e a Polônia estão em pavor com o que Putin fez o que fez na Ucrânia. Obama já tinha mandado tropas para lá. Não à toa Donald Trump está cobrando a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) a aumentar seus gastos militares. Putin está ameaçando esses países do Leste Europeu, principalmente os três Bálticos e a Polônia.
Ao final dessa semana, alguém saiu ganhando geopoliticamente?
Nesse meio tempo, a gente está passando por essa irracionalidade do mercado por causa do coronavírus. Não há racionalidade alguma no que está acontecendo. Até a semana passada, a economia caindo, eu entendia algumas preocupações: a economia vai desacelerar, alguns setores vão perder muito, mas também havia um jogo de realização de lucro muito grande. O que aconteceu hoje (quinta-feira, 12) é irracional (as bolsas de valores do mundo tiveram o pior pregão desde 19 de outubro de 1987, no qual o índice Dow Jones, da Bolsa de Nova York, desabou 22,61%). A medida unilateral de Trump de cancelar voos da Europa ajudou (a piorar a situação). A instabilidade nos mercados é tão grande que é nebuloso saber quem está ganhando nessa briga entre Arábia Saudita e Rússia.
É um elemento a mais em meio a tantos outros fatores que estão contribuindo para a crise?
É uma irracionalidade tão grande que é difícil saber se o barril do petróleo está despencando por causa das ações desses dois governos, especialmente da Arábia Saudita, ou se está caindo por causa dessa irracionalidade do mercado. É difícil. E aí todo mundo está perdendo nesse momento.
Putin, como mestre do xadrez e ex-oficial da KGB (serviço secreto da ex-URSS), não iria deixar passar essa oportunidade de aumentar a presença russa na região.
O que exatamente a Rússia quer no Oriente Médio?
Diminuir a influência americana e retomar a influência que tinha enquanto URSS. Como URSS, eles tinham quase metade dos países como aliados: fundamentalmente Egito, Síria e, em parte, Iraque. Em resumo: retomar essa influência na região que dita os rumos do preço do petróleo e aproveitar essa brecha que Trump está dando ao querer retirar todas as tropas da região. Putin, como mestre do xadrez e ex-oficial da KGB (serviço secreto da ex-URSS), não iria deixar passar essa oportunidade de aumentar a presença russa na região.
A Rússia está ganhando a disputa com os EUA na região?
Hegemonia acho difícil de a Rússia estabelecer, mas está ganhando influência, sim. Afinal, quem manteve Bashar al-Assad no poder foi Putin, não tanto a ajuda iraniana ou a presença do Hezbollah na Síria. Foram a força aérea e tropas russas que viraram o quadro. Al-Assad estava quase caindo, estava por um fio. Com isso, Putin ganha presença e tem aumentado muito a influência junto ao Irã. Putin está conseguindo isso não só por suas ações, mas também por uma ação de Trump, que, ao se retirar do acordo nuclear, praticamente jogou o Irã no colo do Kremlin. Com a normalização das relações que estavam acontecendo, entre Teerã e Washington, o Irã não dependia tanto da Rússia ou da China. Agora, depende. E Putin está jogando com isso.
Até que ponto Putin tolera um Irã com armas nucleares? Aceitam porque tem os aiatolás sob controle ou haverá um momento em que ele dirá: "Daqui vocês não passam"?
Primeiro, ninguém controla Teerã: um império persa, com 3 mil anos de história, um regime teocrático, com o aiatolá Ali Khamenei (líder religioso supremo) como peça fundamental. Ninguém controla o Irã. Mas não interessa a Moscou um Irã nuclear. Cresceria muito em influência não só no Golfo, mas na Ásia Central, que Moscou vê como sua zona de influência natural, o "exterior próximo", que chamam, região que era da URSS. Não interessa aos russos ter esse vizinho nuclear e que possa aumentar influência nas repúblicas russas do Cáucaso e em países da Área Central. Putin quer um Irã forte para se opor aos EUA, mas não forte demais que tenha vida própria.
Os EUA, ao saírem do Oriente Médio, não deixariam aliados, como Israel e Arábia Saudita, vulneráveis?
Não podem sair. Mas eles não têm tropas em Israel e Arábia Saudita. Eles operam a partir dos porta-aviões e do Bahrein e Catar. O que Trump faz é tirar tropas do terreno da Síria e do Iraque. O problema é que, ao fazer isso, fortalece, Irã, Bashar al-Assad e Rússia. Mas fazer esse movimento é importante para a reeleição de Trump. O acordo de paz que Trump assinou com os talibãs está dentro desse quadro. Muito provavelmente o Afeganistão vai mergulhar em uma guerra civil ou os talibãs voltarão a controlar o Afeganistão, mas o principal para Washington é que terminou a guerra, a mais longa da história deles, cortar custos e cumprir promessas de campanha. O problema é se ele será cobrado se houver um novo Vietnã (uma guerra civil ainda maior no Afeganistão), mas acho que ele (Trump) não está muito preocupado com isso.
A saída dos EUA do Afeganistão não abre flanco para a Rússia voltar ao país?
Acho difícil. O Talibã não é uma criação russa. A Rússia também quer um Afeganistão estável. Não quer guerra civil porque o país viraria um novo paraíso para radicais islâmicos atuarem em território russo, especialmente o Estado Islâmico. Não duvido de que a Rússia pudesse apoiar um governo talibã para estabilização do Afeganistão.