A decisão do presidente Donald Trump de suspender voos provenientes da Europa com destino aos Estados Unidos traz embutida na desculpa do coronavírus uma boa dose de vingança.
A União Europeia é, do ponto de vista geopolítico, o único grande ator ocidental a se contrapor aos Estados Unidos em seu exercício de hegemonia global. É seu freio, embora o continente dependa em muito em termos de defesa (leia-se Otan) e economia (o Conselho Europeu já fala em "perturbação econômica") dos americanos.
Projeto de integração nascido no pós-Segunda Guerra Mundial, a UE é um dos símbolos máximos da cooperação internacional – atrás apenas, talvez, da Organização das Nações Unidas (ONU). Tudo o que Trump ignora com seu isolacionismo crescente. Para o presidente americano e seus ideólogos, como Steve Bannon, ex-assessor da casa Branca, organismos multilaterais incorporam o chamado globalismo – o suposto plano da esquerda para dominar o planeta, que encontra expoentes em uma ala do governo brasileiro e na extrema-direita italiana, húngara, polonesa e em outros quadrantes do extremismo mundial. A UE, ao se colocar como entidade supranacional (acima dos Estados nacionais), retira o poder dos governos em nome de uma livre-circulação de pessoas, bens e capitais. No continente, princípios de humanismo, direitos humanos, liberdade de imprensa, respeito às instituições democráticas são premissas caras ao bloco. Quase tudo o que o nacionalismo de Trump e seus imitadores combatem ou, no mínimo, ignoram.
Nesta quinta-feira (12), a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, criticaram a decisão de Trump, que, acima de tudo, ignora tradição diplomática que orienta a informar aliados antes da tomada de uma iniciativa com forte impacto como foi o anúncio da suspensão dos voos. "O coronavírus é uma crise global, não se limita a qualquer continente e requer cooperação e não ação unilateral. A União Europeia desaprova o facto de que a decisão dos EUA de impor uma proibição de viagens foi tomada unilateralmente e sem consulta”, referem os dirigentes das instituições europeias, na declaração conjunta.
Os EUA não estão lidando com potências adversárias - esperaria-se ações como essa em relação aos rivais China, local de origem do vírus, ou Rússia (os adversários orientais). Não em relação a nações amigas.
Não é de hoje a implicância de Trump com a Europa. Com exceção do Reino Unido (pátria mãe, aliada incondicional e poupada na decisão sobre voos), o continente se coloca como freio às aspirações ideológicas de Trump. O presidente americano apoiou o Brexit (a saída dos britânicos da UE), não apenas para ficar ao lado dos conservadores na terra de Sua Majestade, mas porque sabia que isso fragmentaria o bloco econômico.
Mostras dessa ojeriza trumpiana à Europa também já tinham aparecido no final de 2019, durante a reunião de cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Na ocasião, houve coleção de gafes, desencontros e discursos desafinados. Uma ilustração de como a Otan chega aos 70 anos, é verdade. Mas também uma expressão do abismo entre americanos e europeus. O episódio mais simbólico do desalinho foi o vídeo em que o presidente francês, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, foram flagrados rindo e comentando o atraso de Trump na recepção no Palácio de Buckingham. O presidente americano deixou a reunião de cúpula antes do final. Turrão, como o dono da bola que deixa o campinho no meio do jogo porque está perdendo.
Ao menos, não se pode acusar Trump de incoerência. Foi eleito prometendo a América para os americanos. Nada mais fiel a seu slogan do que a decisão de suspender os voos para o seu país por causa da pandemia. Uma decisão retrógrada, nacionalista e unilateral. Trump esquece que vírus não obedecem fronteiras.