1 — Irã e Iraque travaram uma guerra nos anos 1980. Hoje, os dois países são "amigos"?
O conflito entre os dois países, entre 1980 e 1988, teve como como pano de fundo disputas territoriais. As relações entre os dois países se deterioraram após a Revolução Iraniana, em 1979. O novo regime em Teerã pregava o pan-islamismo, em contraste com o nacionalismo árabe do partido Baath iraquiano, de Saddam Hussein. O governo iraquiano, de orientação sunita, se opunha ao regime dos aiatolás xiitas. O conflito matou 1,5 milhão de pessoas.
A queda do regime de Saddam, em 2003, levou à normalização das relações entre os dois países. Desde janeiro de 2010, assinaram mais de cem acordos econômicos e de cooperação. O Iraque permitiu que os muçulmanos xiitas do Irã pudessem fazer as suas peregrinações a lugares sagrados xiitas no país. Em março de 2008, o presidente Mahmoud Ahmadinejad foi o primeiro presidente iraniano a visitar o Iraque desde a Revolução Islâmica. Hoje, ambos os governos têm orientação xiita. O Irã exerce grande influência sobre o Iraque. Suas milícias e grupos paramilitares, como a Kataib Hezbollah, formaram uma grande coalizão para lutar contra os terroristas do Estado Islâmico (que é sunita).
2— As milícias pró-Irã são organizações clandestinas, que funcionam à margem do governo?
Quase todos os líderes dessas milícias começaram combatendo a ocupação dos Estados Unidos, após a invasão, em 2003. A rigor, eram clandestinas. Depois da saída da maior parte dos americanos, houve um rearranjo de muitas delas e com o avanço do grupo terrorista Estado Islâmico (EI) em território iraquiano, as milícias receberam a bênção da mais alta autoridade xiita no país, o grande aiatolá Ali al-Sistani, para lutarem contra a organização extremista. As milícias perderam muitos homens nessa guerra civil, e, após a vitória de Mosul, foram incorporadas ao aparato de segurança oficial, basicamente para efeitos de salários e assistência médica e previdenciária. O problema é que, com o final dos conflitos armados, vários desses grupos se tornaram organizações criminosas, controlando bairros de muitas das cidades e exigindo pagamento de taxa de proteção. As fronteiras iraquianas são também, na maior parte, controladas por milícias que extorquem motoristas.
3 — O que o general Qassem Soleimani, do Irã, fazia no aeroporto de Bagdá?
O general era encarregado do governo iraniano de coletar informações internas e de operações militares secretas, e considerado uma de suas figuras militares mais experientes e autônomas. Sua presença no Iraque não chega a causar surpresa. Ele era o comandante da Força Quds da Guarda Revolucionária do Irã, uma unidade de forças especiais que realiza missões em outros países. Foi nomeado para liderá-la no final dos anos 1990. Nessa função, Suleimani era considerado o principal estrategista por trás dos empreendimentos militares e da influência do Irã na Síria, no Iraque e em outros lugares da região e além. Era considerado o oficial de inteligência militar mais eficaz da região. Um alto funcionário da inteligência iraquiana disse certa vez às autoridades americanas em Bagdá que Suleimani havia se descrito como "a única autoridade para ações iranianas no Iraque".
4— A crise pode arrastar outros países da região para um conflito regional?
Sim. O pano de fundo da crise é a disputa pela hegemonia de poder na região entre as duas grandes potências locais – Arábia Saudita (apoiada pelos Estados Unidos) e Irã (aliado da Rússia). Um conflito aberto entre o Irã e os Estados Unidos tragaria seus aliados para a guerra. Israel e Arábia Saudita ficariam do lado americano contra uma provável aliança entre Irã, Líbano e Síria, com apoio russo. A dúvida é para que lado penderia o governo turco – único integrante da Otan na região e sede da base de Incirlik, de onde partem os ataques aéreos do Ocidente na região, mas cujo governo tem flertado com a Rússia.
5— Trump está buscando uma crise no Oriente Médio como cortina de fumaça para problemas internos, como o impeachment?
Não chega a ser novidade esse tipo de atitude. Presidentes americanos sob pressão doméstica, como é caso de Donald Trump, envolvido em processo de impeachment, costumam apertar os botões de uma guerra. Em 1998, Bill Clinton, também alvo de impeachment, bombardeou Afeganistão, Sudão e Iraque. Trump, por sua vez, está em campanha pela reeleição, em novembro. Não precisaria de uma guerra. O país ainda está dividido, mas a economia vai bem, com desemprego baixo e o país crescendo.
6 — Que posição o Brasil costuma adotar nesse conflitos?
O Brasil manteve posição de neutralidade durante a Guerra do Golfo, em 1991, diferentemente da Argentina, que se alinhou incondicionalmente a Washington. Na época do conflito, o presidente Fernando Collor de Mello concordou com as resoluções da ONU, mas manteve uma porta aberta ao Iraque. O país não enviou tropas ao Golfo Pérsico. Em 2003, durante a invasão americana do Iraque para derrubar Saddam Hussein, o governo brasileiro adotou tom crítico – alinhado às Nações Unidas, que não autorizaram o ataque. Sobre a crise entre Estados Unidos e Irã, o governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a tentar uma mediação, junto com a Turquia. O acerto, conhecido como Acordo de Teerã, previa a troca de urânio enriquecido por um de menor potência, incapaz de ser utilizado em armas nucleares. O acordo chegou a ser comemorado pelo governo brasileiro, mas os Estados Unidos do governo Barack Obama ignoraram o acerto.
7 — O alinhamento do governo brasileiro aos Estados Unidos e a Israel ajuda ou atrapalha?
O governo de Jair Bolsonaro estabeleceu alinhamento automático de sua política externa com Estados Unidos e com Israel. Mas, nas primeiras manifestações sobre a morte do general Qassem Soleimani, o presidente brasileiro adotou cautela. Um apoio à ação americana contra o Irã pode pôr em risco a segurança do país – é conhecida a atuação de células extremistas adormecidas do Hezbollah (grupo libanês financiado pelo Irã) na Tríplice Fronteira (Brasil, Argentina, Paraguai). O Irã também é o principal parceiro comercial brasileiro no Oriente Médio e o maior importador de milho produzido no Brasil.