Foi ou não golpe?
O artigo 20 da Lei Orgânica das forças armadas da Bolívia diz que é papel dos militares "analisar as situações conflitivas internas e externas para sugerir a quem corresponda as soluções apropriadas". Foi com base nesse artigo que os militares bolivianos sugeriram, no domingo (10), que Evo Morales renunciasse. O mandato do presidente terminaria em janeiro de 2020. Pressionado pelas forças armadas e depois que vários ministros deixaram seus cargos, Evo anunciou, pela televisão, sua renúncia.
A crise começou antes da eleição de 20 de outubro. A Constituição boliviana permite apenas uma reeleição. Em 2016, Evo realizou um referendo perguntando se a população queria que ele se candidatasse novamente — o líder está no poder desde 2006.
O "não" venceu. Apesar disso, Evo insistiu em concorrer, alegando "direito humano". Na eleição do dia 20 houve dois métodos de apuração: um rápido, que apontou segundo turno entre Evo e o ex-presidente Carlos Mesa. A contagem foi interrompida com 80% das urnas apuradas. Quando foi retomada, a Justiça eleitoral declarou Evo vencedor no primeiro turno. A oposição não aceitou. Evo pediu uma investigação internacional, feita pela Organização dos Estados Americanos (OEA). O parecer da entidade foi divulgado no domingo (10), apontando irregularidades.
Com base nessa conclusão, os militares sugeriram sua saída. Em meio à crise, Evo denunciou que manifestantes da oposição invadiram sua casa e de seus parentes. Esse foi um dos motivos alegados para renunciar — evitar mais violência, seguindo recomendação (ou pressão) das forças armadas.
Um dos fatores-chave para a queda foi o papel ativo adotado pelos militares e pela polícia, o que sugere uma intervenção desses setores na política e, consequentemente, ruptura da ordem constitucional, como denunciam líderes de esquerda no continente — como os reunidos no Grupo de Puebla, no fim de semana, com presença da ex-presidente Dilma Rousseff, o presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández, e o senador e ex-presidente uruguaio José "Pepe" Mujica. Nesta segunda-feira, a Rússia de Vladimir Putin também denunciou golpe.
Políticos da oposição boliviana, no entanto, tem negado a definição. Dizem que o golpe estava sendo dado pelo próprio Evo, ao forçar uma re-reeleição, atropelando a Constituição. Também o presidente Jair Bolsonaro, em entrevista ao jornal O Globo, disse que a palavra "golpe" só é usada quando a esquerda perde.
Quem está no poder agora?
O artigo 169 da Carta Magna boliviana estabelece a linha sucessória em caso de renúncia de presidente: assume o vice-presidente e, na sequência, a presidente do Senado e, depois, da Câmara. Neste último caso, seriam convocadas novas eleições no prazo máximo de 90 dias. Mas há um problema a mais: após a saída de Evo, a Bolívia vive um vácuo de poder, pois também o vice e os chefes do Senado e da Câmara renunciaram.
Nesse cenário, a segunda vice-presidente do Senado, a opositora Jeanine Añez, reivindicou o direito de assumir a presidência "com o único objetivo de convocar novas eleições".
Evo renunciou em discurso na TV, mas só entregou sua carta de renúncia ao parlamento nesta segunda-feira (11), na qual pediu o retorno da "paz social" e voltou a denunciar a suposta ocorrência de um golpe. A Assembleia Legislativa deverá analisar o documento em sessão nesta terça-feira (12). O Movimento ao Socialismo (MAS), partido de Evo, tem maioria na Casa.
Onde está Evo Morales?
Evo está na zona cocalera de Chapare, seu berço político. O ex-presidente chegou no domingo à região, abordo do avião presidencial.
Não está claro qual será seu destino. Ele afirmou que não abandonaria a Bolívia, mas o México ofereceu asilo. Outros 20 políticos ligados a Evo estão abrigados na embaixada mexicana em La Paz. Vários deles afirmaram que suas famílias haviam sido ameaçadas. Manifestantes queimaram casas de várias autoridades no país.
Por que houve prisões?
Um dos líderes da oposição, Luis Fernando Camacho, anunciou que pretende levar a julgamento Evo Morales. "Agora nasce uma nova Bolívia, não podemos seguir encobrindo ninguém por amizade. Vamos iniciar processos de responsabilidade ao presidente Evo Morales, ao vice-presidente, a todos os seus ministros, absolutamente a todos, porque eles fizeram parte das mortes", acusou Camacho, em um vídeo.
"Comecemos julgamentos aos delinquentes do partido do governo, colocando-os presos. Amanhã (segunda) começamos os processos", disse, assegurando que não se trata de vingança, mas de "Justiça divina".
Não se sabe, oficialmente, quais seriam as acusações contra Evo ou seus aliados. As únicas autoridades detidas até agora, são a ex-presidente do Supremo Tribunal Eleitoral da Bolívia, Maria Eugenia Choque Quispe, e o vice, Antonio Costas.
O pedido de investigação e prisão da presidente e do vice-presidente do TSE boliviano, de acordo com o comandante da polícia, partiu de Juan Lanchipa Ponce, chefe do Ministério Público da Bolívia.
Há mandado de prisão contra Evo Morales?
Pelo Twitter, Evo denunciou que haveria uma "ordem de prisão ilegal" contra ele. "Denuncio ao mundo e ao povo boliviano que um oficial da polícia anunciou publicamente que tem a instrução de executar uma ordem de prisão ilegal contra minha pessoa", tuitou.
A polícia da Bolívia, porém, negou a existência do mandado contra o ex-presidente. "Quero informar à população boliviana que não há mandado de prisão contra oficiais do estado como Evo Morales e seus ministros", disse Yuri Calderón, comandante da Polícia Nacional, à emissora de TV boliviana Unitel.
Antes do posicionamento da polícia, membros da oposição também chegaram a declarar que haveria uma ordem para prender o ex-presidente.
Quem são os líderes do movimento contra Evo?
Há vários. Quem recomendou a saída do presidente foi o comandante das forças armadas, general Williams Kaliman, em pronunciamento no domingo (10).
Nos últimos dias, reapareceu no cenário um antigo líder político, Luis Fernando Camacho. Católico conservador, advogado de 40 anos, ele é chefe do Comitê Cívico de Santa Cruz, uma espécie de associação de empresários. Camacho vinha alardeando que levaria uma carta de renúncia a Evo — foi impedido na semana passada, mas, no domingo, ele conseguiu entrar no Palácio Quemado, sede do governo em La Paz. Ajoelhado diante de uma Bíblia e da bandeira da Bolívia, comemorou a renúncia de Evo. Não se sabe até o momento qual será o papel de Camacho no futuro da Bolívia.
Outro líder de destaque é o candidato que concorreu com Evo pela presidência, na polêmica eleição do dia 20 de outubro, Carlos Mesa. Desde o início da crise, ele vinha questionando o resultado e denunciando fraude. Mesa governou o país por um ano e sete meses, entre 2003 e 2005. Foi o último presidente liberal do país. Depois da renúncia de Evo, ele tem reivindicado que a linha de sucessão presidencial estabelecida na Constituição fosse seguida e disse que caberia ao Legislativo eleger o novo presidente. "Isso não foi um golpe de Estado", afirmou à imprensa local. Mesa ainda defendeu que a prioridade da polícia e das Forças Armadas seja a de "garantir e preservar a ordem" no território boliviano, já que "existe o risco de atos de provocação" dos partidários de Evo e de vandalismo.