Todo general sabe que é fácil começar uma guerra. O difícil é terminá-la. Que o digam os Estados Unidos, até hoje envolvidos no Afeganistão e no Iraque. Ou se acaba com a guerra em uma mesa de negociações — e, mesmo assim ressentimentos permanecem, com ensina o século 20 — ou se finaliza com um canetaço unilateral. Donald Trump escolheu a segunda opção ao anunciar a retirada de suas tropas da fronteira entre Síria e Turquia. Fez isso por dinheiro — é mais vantajoso fazer com que aliados se encarreguem de seus problemas, de preferência comprando armas americanas, do que encarar os custos políticos e a gastança de uma operação no terreno.
Mas, se o ditado lá do início do texto vale para os altos oficiais, no front, há outro, que os fuzileiros navais americanos conhecem bem: "semper fidelis" ("sempre fiel"). Em bom português, não se abandona um companheiro de trincheira. Ao dar carta branca para as tropas do presidente turco Recep Tayyip Erdogan, um dos tiranos do Oriente Médio, invadirem áreas curdas na Síria, Trump abandonou seus mais fiéis aliados na luta contra o grupo terrorista Estado Islâmico (EI).
Com população entre 25 mil e 35 mil, os curdos são o maior povo sem Estado do mundo. Ocupam áreas de Turquia, Irã, Iraque e Síria. O Curdistão autônomo foi uma promessa da I Guerra Mundial, com a implosão do Império Turco-Otomano. Mas, com a fundação da Turquia moderna de Mustafa Kemal Atatürk e a partilha do restante da região entre Irã, Reino Unido (onde hoje fica o Iraque) e França (onde hoje é a Síria), os curdos ficaram um naco de terra para chamar de seu.
Viram na recente guerra contra o Estado Islâmico oportunidade de serem lembrados pela comunidade internacional — o que, de fato ocorreu. No conflito, os curdos cerraram fileiras ao lado dos americanos. Seu exército peshmerga, no Iraque, composto em grande parte por bravas mulheres, pôs para correr os extremistas. Do lado sírio, o União de Proteção Popular (YPG) defenestrou os remanescentes do EI. Muito sangue curdo escorreu pelo deserto para que cidades como Mossul e Raqa fossem arrancadas das mãos dos terroristas.
Trump, agora, trai seus parceiros de trincheira, permitindo que o governo turco realize seu sonho de criar um colchão de proteção de 32 quilômetros entre o país e a Síria — na prática, a fronteira turca será empurrada Síria adentro. Mais: abre as portas para a eliminação do YPG, por sua ligação com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), vistos como terroristas pela Turquia porque exigem a independência do território curdo.
O abandono americano entrega a região de bandeja para Turquia, Rússia e Irã, manobra que complica a vida de parceiros como Arábia Saudita e Israel e traz ainda embutido o temor de retorno do EI à região. Do lado de cá do mundo, a traição aos curdos serve de alerta à política externa de Jair Bolsonaro: Trump não é confiável. O socorro aos aliados pode não vir quando for preciso.