Pegue um dos versículos mais conhecidos do Evangelho, aquele em que Jesus sentencia: "Porque é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus".
Agora, imagine se, no lugar de camelo, estivesse escrito "vaca": "Porque é mais fácil uma vaca passar pelo fundo de uma agulha..." Hum... Estranho, né?
Questões como essa não raro pululam a mente de tradutores da Bíblia, o livro mais vendido do mundo. Isso ocorre, por exemplo, quando é preciso traduzir nomes de animais que habitam a região onde se passaram os eventos do livro sagrado, como os camelos no atual Oriente Médio, para culturas que desconhecem esses bichos. As opções, segundo especialistas, seriam trocar a palavra por um ser conhecido daquela comunidade — uma vaca, por exemplo —, ou explicar o que é o tal camelo em nota de rodapé. No caso em questão, os tradutores da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB), entidade responsável pela tradução da bíblia evangélica, faziam uma versão para o povo guarani, indígenas que habitam parte da América do Sul. A opção por usar vaca em vez de camelo chegou, de fato, a ser cogitada, mas acabou-se escolhendo o termo em português, oriundo do latim "camelus". A fidelidade ao original falou mais alto, mesmo que a cultura guarani desconheça o tal animal de duas corcovas do deserto bíblico.
— A Bíblia é o livro mais estudado do mundo. Mesmo assim, existem textos mais complexos de se traduzir, nos quais os biblistas não sabem exatamente o que significam determinadas palavras. Por mais que se tenha feito muito progresso, há gente ainda discutindo e propondo novas traduções de alguns textos — explica Vilson Scholz, consultor de tradução da SBB.
Existe uma tradição interpretativa. O Velho Testamento foi escrito em hebraico e aramaico. O Novo, em grego. No caso da Bíblia católica, a tradução é feita por editoras ligadas à Santa Sé, que dá seu aval canônico. A Bíblia evangélica é de responsabilidade das Sociedades Bíblicas Unidas, representadas no país pela Sociedade Bíblica do Brasil.
O desafio equilibrar atualidade e fidelidade a textos milenares e sagrados para várias religiões serão debatidos nesta sexta-feira (7) e sábado (8) em Porto Alegre. Uma das preocupações é adaptar termos para que as novas gerações possam compreender seu significado. Por exemplo: um publicano pode ser atualizado, na visão dos evangélicos, para cobrador de impostos.
Nos últimos seis anos, especialistas SBB debruçaram-se em um trabalho minucioso para revisar e atualizar uma das versões mais populares da Bíblia em língua portuguesa, edição traduzida por João Ferreira de Almeida no século 17.
— Os escritores bíblicos não deixara dicionário com o significado de cada palavra, mas existe toda uma literatura da época que nos permite ver as palavras. A dificuldade muitas vezes não é com o significado da palavra, mas como vamos expressá-la: objetos, realidades, instituições que existiam no tempo bíblico e que não existem mais — afirma Scholz, que, no sul do Brasil, trabalha como consultor para tradução para línguas germânicas, em especial o pomerano e o alemão falando na região do Hunsrück, de onde vieram muitos migrantes para o Estado.
Muitas vezes, não basta conhecimento de grego, hebraico e latim (quando os escritos começaram a ser utilizados no Império Romano). É preciso sensibilidade. Sobretudo com os livros poéticos, como Salmos e Provérbios. Na Bíblia de Almeida atualizada, que está sendo lançada, houve a preocupação em assinalar as diferenças entre trechos de poesia, com texto alinhado à esquerda, e versículos em prosa, justificados.
— Às vezes, não precisa dizer tudo o que está lá. Às vezes, precisa dizer mais, para não trair o leitor. Precisa ser fiel ao original, precisa traduzir o significado, mas você também precisa ser fiel ao seu leitor — diz o especialista.
Pode-se imaginar que um dos livros mais misteriosos da Bíblia, o Apocalipse, seja difícil de traduzir. Não o é, segundo Scholz. Ele explica que o grego do último livro bíblico é acessível. O desafio, nesse caso, deve-se à interpretação de escrituras com narrativas de seres mitológicas e tantas figuras de linguagem e profecias.
— É fácil traduzir. A dificuldade é entender sobre o que se refere. O Apocalipse fala em dragão, que é uma figura mitológica, mas o próprio livro explica: é Satanás, o príncipe do mal, a antiga serpente. Isso está explícito. O tradutor não tem dificuldade de fazer o seu trabalho. Mas depois, como explicar? Aí começa a discussão. Felizmente, o tradutor não precisa se preocupar com isso. Deixa que outros briguem para ver o que significa — diverte-se Scholz.
Serviço
Seminário de Ciências Bíblicas em Porto Alegre (RS)
Dias: 7 e 8 de junho de 2019
Horário: Dia 7, das 19h às 22h _ Dia 8, das 8h às 12h e das 13h30 às 17h
Local: Igreja Evangélica Assembleia de Deus
Endereço: Rua General Neto, 384, Moinhos de Vento, Porto Alegre
Inscrições: 0800 727 8888, (51) 3272-3006, (51) 3222-0888
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Valores: R$ 40 para o público em geral e R$ 20,00 para seminaristas e grupos de inscritos com 10 ou mais participantes