Ancara, capital da Turquia, 2016. Rosi, uma missionária, observa o olhar triste de uma mulher com uma criança no colo. A refugiada da guerra civil na Síria chora. Rosi se aproxima, troca poucas palavras em inglês. A mulher, que pouco sabia se comunicar naquele idioma, balbucia sua tragédia pessoal. Conseguira fugir com o bebê e outra criança. O marido fora decapitado por terroristas. Nos dias seguintes à morte, ela trancafiou-se em casa e pedia às crianças que se calassem. Qualquer barulho, um choro sequer, poderia atrair de volta os extremistas.
Aquela mulher enfrentara, com outras centenas de refugiados, o frio de -15ºC na jornada até a Turquia. Muitos chegaram com os pés gangrenados das longas caminhadas. Rosi ouviu aquela história. Falou pouco. Pediu apenas que a mulher não perdesse a fé.
É compreensível imaginarmos missionários em ação em zonas de guerra, arregaçando as mangas, resgatando vítimas entre escombros, distribuindo comida a famintos. Mas, como Rosi, em Ancara, também são excelentes ouvintes. E muitas vezes o que as vítimas de desastres mais precisam é serem escutadas.
Naquela noite em Ancara, no hotel, depois de um momento de orações, os missionários ouviram um estrondo. O prédio tremeu. Uma bomba havia explodido a um quilômetro dali, matando mais de 40 pessoas.
Histórias como essas, de solidariedade em meio ao perigo, estão no livro Fraternidade —Missões Humanitárias Internacionais, que a fotógrafa mineira Ana Regina Nogueira lança, nesta sexta-feira (7), em Porto Alegre. A obra, resultado de dois anos de pesquisas e mais de 200 entrevistas, perpassa, uma a uma, as viagens da entidade, fundada em 1990 pelo filósofo José Trigueirinho Netto em Carmo da Cachoeira, Minas Gerais.
Estoura uma tragédia natural ou bombas começam a cair sobre a terra e lá costumam ir os missionários da Fraternidade. Um pequeno grupo está sempre pronto a embarcar. A primeira missão foi no Nepal, em 2011, quando um terremoto destruiu vilarejos do interior do país. Ao longo dos anos, os missionários criaram um método de trabalho que chamam de "modelo em rede": uma pequena equipe treinada em práticas de socorro, resgate e sobrevivência, se desloca rapidamente para o epicentro dos desastres. No local, eles se unem a outras instituições. No caso do Nepal, trabalharam com as Missionárias da Caridade, ordem católica criada por Madre Teresa de Calcutá. Em Ancara, atuaram com a Associação de Solidariedade de Solicitantes de Refúgio e Migrantes (Asam). Volta e meia estão ao lado do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).
Das parcerias nascem aprendizados: durante o terremoto no Nepal, auxiliaram as religiosas da Caridade em um sanatório e em um asilo de Katmandu. A primeira tarefa: lavar roupas sujas de fezes. Acostumados a ter água corrente em abundância e a usar luvas plásticas, confrontaram-se com apenas três baldes com a mesma água. Logo, as luvas se romperam com o trabalho árduo. Olharam para o lado e viram as freiras de sandálias, sem nada nas mãos para protegê-las. Passaram a imitá-las.
O livro de 484 páginas é uma espécie de mapa da solidariedade. Por meio de fotografias e relatos dos voluntários, é possível conhecer em detalhes as missões realizadas entre 2011 e 2018: além da catástrofe dos refugiados no Oriente Médio e do terremoto no Nepal, estão lá relatos de desprendimento em zonas de miséria e conflitos na Etiópia, no Quênia, em Ruanda, incêndios florestais no Chile, dramas em asilos na Nicarágua e histórias de populações vítimas de inundações na Argentina. Hoje, a organização, com mais de 60 mil colaboradores, está presente em 18 países.
Nos últimos anos, também o Brasil passou a vivenciar desastres que, antes, pareciam apenas ilustrar o noticiário internacional: a instabilidade política na Venezuela deflagrou uma crise humanitária na fronteira, em Roraima, e os rompimentos das barragens em Mariana e Brumadinho atraíram os missionários para missões dentro de casa. Desde 2016, a Fraternidade está presente em Boa Vista e Pacaraima, prestando atendimento aos refugiados venezuelanos. Em Mariana e Brumadinho, não apenas os seres humanos foram socorridos. Uma das características dos missionários é resgatar também os animais.
De ação independente e neutra, a Fraternidade atua sem vínculos políticos ou econômicos. Todas as atividades são financiadas por doações.
"É uma obra de amor"
Uma globetrotter, a fotógrafa Ana Regina Nogueira, 70 anos, encontrou em uma fazenda em Lavras, Minas Gerais, a paz que a vida agitada pelo mundo não lhe permitia. Desde os anos 1970, a profissional se tornou conhecida pelas fotos em preto e branco, participando de publicações e exposições coletivas e individuais, destacando-se as mostras La photographie contemporaine en Amerique Latine (Centre George Pompidou, Paris, 1981), Turning the map: images from the Americas (Camerawork Gallery, Londres, 1992), Canto a la realidade (Casa de América, Madrid, 1993), La Utopia Amorosa (Centro Cultural Borges, Buenos Aires, 1996). Nascida em Belo Horizonte, é autora de quatro livros. Na entrevista a seguir, ela conta como foi a pesquisa para a obra Fraternidade: missões humanitárias internacionais, livro que escreveu, de forma voluntária, a pedido do fundador da organização, José Trigueirinho Netto.
O trabalho dos missionários é pouco conhecido no Brasil. Como foi esse processo de aproximação entre você e o trabalho da Fraternidade?
Realmente, pouca gente conhece. Durante muito tempo, esse trabalho foi mais interiorizado, de formação das pessoas. Começou nos anos 1990. Eu andava por aí, pelo mundo, com uma vida muito intensa como fotógrafa, realizando tudo que alguém pode querer, sucesso profissional, vida familiar, viagens, fui trilhando tudo isso até que cai em um grande vazio. Era um vazio de amor. Eu cheguei a essa obra (os voluntários), descobri essa obra do Trigueirinho (José Trigueirinho Netto, fundador da Fraternidade). Um amigo me ofereceu um livro e disse que está formando uma comunidade no sul do Minas. Eu nunca tinha ouvido falar, mas cheguei lá. Percebi que precisava de mais respostas. A vida, pelo que a nossa sociedade oferece, é muito pouco. Lá comecei a acompanhar a transformação da própria comunidade. Foi crescendo.
Há uma preocupação presente no livro de não passar a ideia de que as missões buscam catequização ou doutrinação. A Fraternidade é ligada a alguma religião?
Nenhuma. Acolhemos todas as religiões, mas temos uma raiz espiritual. Sem nenhuma doutrinação. Agora mesmo, há um grupo no Líbano, trabalhando com órfãos sírios, que viram os pais serem decapitados. Eles estão bem na fronteira com a Síria, trabalhando com muçulmanos. É um trabalho de puro amor. E, quando é amor, é coração com coração.
Para o livro, a senhora ficou pesquisando durante dois anos, entrevistando mais de 200 pessoas e editando 20 mil fotos. Como foi esse trabalho?
No início, comecei a conversar com os missionários e tentar compreendê-los: "Me conta a sua vida, quero entender o que é ser missionário". Ricardo Baumgartner (voluntário) tinha uma vida de sucesso, ganhava dinheiro, estava na África, em Angola, na reconstrução do país depois da guerra. Ele largou tudo e hoje só trabalha como voluntário, sem ganhar nenhum dinheiro há anos. Fui procurar Clara (Vânia Fátima dos Santos, chamada de Clara pelos missionários). Ela também estava muito bem com a vida e largou tudo para se doar. O que leva essas pessoas a ser um semeador do amor? A transformar a ajuda ao outro em uma coisa maior do que a própria vida. Eu precisava compreender. Fui perguntando, conversando, as entrevistas eram longas, uma hora e 15 minutos. Vejo o mundo de forma bastante poética. Sou apaixonada pela vida. Fui colocando na escrita aquilo tudo o que fui aprendendo com eles.
Você que é uma fotógrafa, uma pessoa da imagem, como foi fazer a migração para o texto?Sempre amei a palavra, a poesia, um bom texto. A fotografia, esse trabalho fantástico com a luz, é uma grande aprendizagem para a escrita. Quando faço uma entrevista, vai se desenhando aquela história na minha mente. Quando a gente senta para escrever, está colocando em palavras aquilo que se enxerga. É também uma imagem, só que uma imagem mental.
Os missionários estavam acostumados a trabalhar em tragédias no Exterior. Mas, de uns anos para cá, também desastres naturais ou crises humanitárias também têm ocorrido no Brasil. Como é lidar com tragédias em seu próprio país?
Dentro de casa, né? Aqui, a gente está com um trabalho no Sertão, que acontece duas vezes ao ano desde 2014. Um grupo missionário está fazendo um trabalho na terra do Graciliano Ramos, Palmeira dos Índios (Alagoas). São pessoas que não têm água para beber, doenças, índice altíssimo de prostituição. A Fraternidade sempre trabalha ligada a alguma instituição. No Líbano, a ação ocorre junto a um grupo de jovens sírios que fugiu (da guerra) e que agora fundou uma ONG para acolher órfãos. No Sertão, o trabalho é com Cáritas. Eles também socorrem animais em todas as missões. Em Brumadinho, eles logo foram. Os missionários têm uma coisa muito bonita: carregam uma reverência, um silêncio. Quando chegaram a Brumadinho, as pessoas em uma situação dessas ficam muito desequilibradas emocionalmente, agitadas, caos, confusão, barulho. E os missionários são seres muito silenciosos, eles percebem onde está o trabalho. Eles entram na logística para organizar o ambiente de forma bem ritmada. Uma dança. Eles trazem uma energia diferenciada. E é isso que encanta todos os parceiros, Exército, Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) e outros.
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Lançamento em Porto Alegre: sexta-feira, 7 de junho - 19h. Livraria Cultura. Bourbon Shopping Country. Avenida Tulio De Rose, 80 (Piso 2)
Sábado, 8 de junho - 16h. Instituto Popular de Arte-Educação (IPDAE). Avenida João de Oliveira Remião, 7193 Parada 18 | Bairro Lomba do Pinheiro
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