Julia Le Duc é fotógrafa de polícia do jornal La Jornada, de Matamoros, cidade mexicana dividida pelas águas turvas do Rio Grande de Brownsville, no Texas. Como a maioria dos repórteres que cobrem criminalidade, atentados ou guerras, ver de perto cadáveres, em alguns casos dilacerados, não chega a chocar. Na primeira vez, você pode não dormir à noite. Na segunda, lembrará de um filho, de um sobrinho, do pai, da mãe. Na terceira, quase não sentirá nada e passará a ver essas cenas como parte do trabalho.
Alguns jornalistas inventam estratégias para enganar o cérebro, ludibriar emoções. Eu, por exemplo, costumo colar o olho no visor da câmera para ver a morte por um filtro. Desenvolvi essa técnica muito pessoal, admito, durante a cobertura do terremoto no Haiti, em 2010, quando fiquei diante de alguns dos 300 mil mortos que a terra produziu.
Isso não significa que sejamos indiferentes ou estejamos anestesiados. A morte de um ser humano é sempre uma tragédia. E, quando se trata de crianças, alerto, as técnicas de naturalizar o que não é natural não funcionam.
Julia contou ao jornal britânico The Guardian que, ao avistar os corpos de Óscar e Valeria, foi atraída pelo braço da menina no entorno do pescoço do pai.
— Me emocionou ao extremo, porque mostra que, até o último momento, ela quis ficar junto a ele, não só dentro da camiseta, mas também naquele abraço que terminou com a morte de ambos — descreveu a fotógrafa.
A imagem que nesta quarta-feira (26) correu o mundo e se tornou mais um ícone da tragédia dos refugiados foi publicada originalmente no La Jornada, o jornal de Julia. Mas a foto já não pertence ao pequeno diário mexicano. Entrou para hall da infâmia, ao lado daquelas cenas que, infelizmente, passamos a colecionar nos últimos anos — a do menino Aylan na praia da Turquia, a do garoto Omran na ambulância de Aleppo e a de Samar Dofdaa, que, aos 34 dias de vida, não tinha força sequer para chorar ao nascer em uma clínica de Damasco.
No domingo (23), Julia deslocou-se até as margens do Rio Grande ao receber um telefonema. A polícia de Matamoros havia sido chamada.
— Uma mulher estava desesperada junto ao rio. Gritava que a corrente lhe tinha levado a filha — contou ao The Guardian.
Julia só soube depois que a mulher se chamava Vanessa. A família havia partido de El Salvador para pedir visto humanitário aos EUA. O escritório americano de migrações estava fechado no fim de semana. Desesperado, Óscar teria olhado para o rio e dito à mulher:
— É aqui que vamos atravessar.
O salvadorenho atravessou primeiro com a filha de um ano e nove meses e a deixou na margem do lado americano. Voltou para para buscar a mulher. A menina, então, lançou-se nas águas, atrás do pai. O Rio Bravo, como os mexicanos chamam o grande rio, não perdoou. Óscar voltou para salvar a filha, mas a corrente acabou arrastando os dois. Os bombeiros localizaram os corpos na segunda-feira (24).
— Se cenas como essa não nos fazem repensar, se não mexem com nossos políticos. Então, nossa sociedade está mesmo no mau caminho — disse a fotógrafa.
Tenho dúvidas se mexem, Julia. Na semana passada, o Alto Comissariado das Nações Unidas (Acnur) divulgou que 70 milhões de pessoas no mundo estão deslocadas por motivos de perseguição política, crises econômicas, por suas preferências sexuais ou por sua etnia. Pouco se comentou. É verdade que nenhuma estatística ou relatório mobiliza mais do que a foto de Óscar e Valeria abraçados. Números são frios. Pai e filha têm nome, sobrenome, história. Talvez não fiquemos indiferentes. Os filtros já não são suficientes.