Pela primeira vez, a guerra comercial entre Estados Unidos e China respinga no cidadão comum. Com o Google rompendo com a Huawei, milhões de usuários de smartphones da companhia poderão ficar sem aplicativos e atualizações. A gigante de tecnologia americana decidiu seguir a ordem do governo Donald Trump praticamente no momento em que, no Brasil, a empresa chinesa lançou seu P30 Pro, um dos aparelhos Android mais avançados disponíveis no mercado.
Sobrou para o consumidor o que, no fundo, é parte de um duelo econômico e por hegemonia no planeta. A Casa Branca estabeleceu uma lista de 71 empresas chinesas com as quais as companhias americanas estão proibidas de negociar — entre elas, a Huawei. Entretanto, com a gigante oriental, que ultrapassou a Apple em produção de smartphones no mundo, o furo é mais embaixo. A Huawei é a bruxa malvada de Trump. Encarna boa parte de todo o mal que Washington vê nos chineses. Desde 2018, Trump acusa a empresa de estar a serviço do governo chinês para espionar os americanos. Também no ano passado, a filha do fundador e executiva Ming Wanzhou chegou a ser detida no Canadá a pedido das autoridades dos EUA.
A companhia nega qualquer envolvimento em ciberespionagem. O governo de Pequim acusa os EUA de estarem usando dispositivos de segurança nacional para justificar protecionismo. O mundo em geral e os americanos em particular esperam esta semana por novas retaliações chinesas.
Em meio ao momento de maior tensão até agora da guerra comercial, placas tectônicas da geopolítica se movimentam. Não passam despercebidas provocações.
O embaixador americano na China chegou ao Tibete, algo inédito em quatro anos. A visita de Terry Branstad ocorre dois meses depois da publicação de um relatório pelo Departamento de Estado americano que afirma que Pequim obstrui "sistematicamente" o acesso às zonas tibetanas. O que ocorre no interior do Tibete, ocupado pela China, é um mistério para o mundo. O ingresso na região é controlado com rigor — praticamente proibido para os diplomatas e jornalistas estrangeiros. Uma autoridade americana do porte de um embaixador visitar a região significa quase apoiar sua independência, reivindicada pelo Dalai Lama. O Tibete é o esqueleto no armário de Pequim. Jogar no ventilador global as violações aos direitos humanos cometidas pelos chineses é também uma forma de atingi-los.
O vice-presidente Hamilton Mourão desembarcou no domingo na China para encontro com o presidente Xi Jinping. A missão do general: tentar desfazer a má impressão da retórica antichinesa do presidente Jair Bolsonaro e do setor ideológico do governo, além dos petardos lançados, da Virgínia, por Olavo de Carvalho. Mas tão importante quanto mudar a percepção oriental sobre os novos homens do Planalto está a proposta de adesão do Brasil à Belt and Road Initiative (BRI), chamado informalmente de "Nova Rota da Seda".
O grande projeto global de investimento em infraestrutura emula, ao menos simbolicamente, a maior rota comercial do mundo antigo: os caminhos por terra e mar que ligavam o sul da Ásia e a Europa para comércio de tecido. O Belt and Road do século 21 prevê megainvestimento para conectar o mundo aos mercados chineses — estradas, ferrovias, portos, aeroportos e redes de telecomunicações. Nesse ponto, a Huawei seria estratégica porque é referência em mercados 5G.
A contragosto dos americanos, o governo de Pequim conseguiu reunir, em abril, 38 chefes de Estado e de governo, 6 mil representantes de 150 países e 92 organizações internacionais para discutir o projeto. Atrair o Brasil para a Nova Rota da Seda é uma forma de alfinetar Trump (a quem Bolsonaro prometeu relação carnal) na América Latina.