Davos foi o aperitivo, a antessala da estreia de Jair Bolsonaro em âmbito internacional. No Fórum Econômico Mundial, embora pairasse sobre o vencedor da eleição no gigante latino-americano a curiosidade mundial, o presidente era personagem coadjuvante. No Salão Oval da Casa Branca, nesta terça-feira, com Donald Trump, Bolsonaro será protagonista.
É hora de tirar a ideologia da sala – nem de esquerda, que dominou o Itamaraty nos anos Lula-Dilma nem de extrema-direita, que ora se espalha pela Casa de Rio Branco.
Há muito em jogo nas relações entre Brasil e Estados Unidos. O risco é Bolsonaro ser capturado pelas fanfarronices de Olavo de Carvalho – que, neste domingo, afirmou que "até hoje não sabe quais são as ideias políticas de Bolsonaro", mas que o apoio por ser ele "um homem honesto e não ser ladrão". Para setores do governo – inclusive a família Bolsonaro, Olavo é guru. Lembra até a admiração rasgada de Trump a Vladimir Putin antes da eleição, sem que os dois nunca tivessem se encontrado.
O deputado Eduardo Bolsonaro chegou antes do pai aos EUA. Agora, é líder do Comitê de Relações Exteriores da Câmara, mas bem antes de ser ungido ao cargo já exercia, na prática, o cargo de chanceler paralelo. Seria salutar Eduardo deixar o chanceler Ernesto Araújo trabalhar – a ideia de um ministro paralelo não funciona, como já vimos nos governos do PT, nos quais o assessor de Assuntos Internacionais do Planalto Marco Aurélio Garcia exercia sombra sobre Celso Amorim.
Por mais que se discorde da carga ideológica de Araújo – com visões obtusas sobre relações internacionais, segundo as quais o Ocidente estaria ameaçado pelo Oriente –, é dele o cargo mais alto da diplomacia brasileira neste momento. E, em relações exteriores, governos precisam ter voz uníssona – ruídos ou duplos sentidos não costumam funcionar.
É hora da razão na política externa. O risco no encontro com Trump é Bolsonaro ser capturado pelas visões do americano, como se sabe, pouco afeito aos estudos de relações internacionais. Por exemplo, embarcar nas ideias de Steve Bannon, como gostariam alguns assessores e o próprio Eduardo, é um erro. Bannon foi um dos homens que forjaram a candidatura Trump. Ok, tem seu mérito como estrategista, mas hoje é visto como traidor pelo círculo mais próximo do Salão Oval. Foi demitido pelo presidente americano e alça voo solo no seu chamado "Movimento" – um esforço para formar uma universidade de direita, na qual governos populistas com viés autoritário, como Hungria e Polônia, são exemplos.
As relações com os EUA são fundamentais para o Brasil. É o segundo principal destino dos produtos brasileiros (12% do total). Nesta visita, a Casa Branca tem prometido duas medidas do ponto de vista comercial e estratégico que são altamente interessantes para os brasileiros: os americanos planejam derrubar o veto à entrada do país na OCDE e declarar o Brasil como aliado extra-Otan. Mas, em demais áreas, nossos interesses em política externa são outros. É, por exemplo, estranho ao campo da diplomacia – onde a reciprocidade é uma das máximas – o Brasil retirar obrigatoriedade do visto aos americanos, sem que o mesmo ocorra para nossos cidadãos nas aduanas dos EUA.
O Brasil também não pode ser absorvido pela retórica belicista de Trump com a China – e que casa tão bem com o pensamento de Olavo de Carvalho. Nesse campo, nosso interesse é outro – os chineses são nossos principais parceiros e a perda de mercado preocupa a bancada do agronegócio, formada, aliás, por aliados do governo.
No caso da crise venezuelana, os generais de Trump, como os de Bolsonaro, não recomendam intervenção no país sul-americano, mas, no íntimo, se dependesse do atual inquilino da Casa Branca, ele já teria se livrado de Nicolás Maduro com um canetaço. O Brasil, onde a tradição é não comprar briga com vizinhos, não deve entrar nessa aventura – ainda que Maduro seja um ditador e um problema nas nossas barbas.
Outro tema é a questão do Oriente Médio. O alinhamento automático com Israel – confortável para o governo americano é uma cilada para o Brasil, que tem os árabes como importantes compradores de produtos brasileiros. Os negócios com Israel representam menos de 1% do comércio exterior brasileiro. Conforme dados do Ministério da Indústria e Comércio Exterior (MDIC), em 2018, o Brasil exportou para o país US$ 321 bilhões (especialmente carne bovina, soja, suco de laranja e calçados). E o Brasil compra mais do que exporta – a balança comercial fechou em déficit de US$ 847,8 milhões. As trocas entre o país e as nações de maioria muçulmana somaram US$ 22,9 bilhões. A balança é favorável ao Brasil em US$ 8,8 bilhões. Juntas, as 22 nações reunidas na Liga Árabe representam o segundo maior comprador de proteína animal brasileira – os principais clientes são Egito (18,6% das receitas), Arábia Saudita (18,3%) e Emirados Árabes Unidos (17,7%).
A Europa é, por fim, o quarto ponto: na reforma imposta ao Itamaraty, o continente deixou de ser um departamento exclusivo, para ser misturado à África e ao Oriente Médio. O chanceler Araújo costuma chamar, em seus discursos, o continente de "vazio cultural".
Conversar com Trump é importante, saudável e relevante. Mas o mundo não se restringe aos EUA. Entre Brasília e Washington foram pelo menos 10 horas de voo. Não seria má ideia se o presidente Bolsonaro aproveitasse o tempo para revisar os princípios da diplomacia brasileira, baseada no pragmatismo: conversar com todos os lados, mas, acima de tudo, medir, a cada diálogo, os pontos que mais interessam aos brasileiros. E decidir conforme essa premissa.