Em 2004, em um vilarejo do Vietnã cujo nome entrara para o hall da infâmia do século 20, encontrei Ha Thi Quy, 78 anos. Ela estava agachada, o corpo franzino sustentado pelos calcanhares fortes, posição na qual os vietnamitas são capazes de permanecer por horas enquanto nós, ocidentais, não aguentamos mais do que dois minutos. O local era My Lay, onde em 1968 uma companhia da 11ª Brigada de Infantaria dos EUA, na caça por vietcongues, matou 504 pessoas. Todas civis. Foi um erro, o maior de todos cometidos pelo exército americano nos 10 anos do atoleiro no Sudeste Asiático.
Quy perdeu a filha He e o filho Duc no massacre. Ela, o marido e a outra filha estavam entre os 18 do vilarejo que se salvaram. No meio do horror, Quy fingiu estar morta e foi jogada em um dique. Viveu para contar a história.
– Choro às vezes. Tento esquecer. Mas não consigo – ela me disse naquela manhã de 2004, 30 anos após o fim da guerra.
My Lay seria uma vila empoeirada qualquer do centro do Vietnã não fosse aquele 16 de março de 1968.
O massacre ficou escondido até a reportagem de Seymour Hersh trazer a público a verdade e envergonhar a Casa Branca. O caso serviu para a sociedade americana elevar a pressão sobre o governo para que trouxesse para casa seus filhos, metidos em um conflito que não era deles.
My Lay aconteceu três anos antes de o The Washington Post trazer a público os Pentagon Papers, história contada no filme The Post – A Guerra Secreta, que estreia nesta quinta-feira no Brasil. Em resumo, os documentos, chamados oficialmente de United States–Vietnam Relations, 1945–1967: a Study Prepared by the Department of Defense, mostravam que os EUA haviam expandido sua ação na guerra, envolvendo um terceiro país – o Laos –, efetuando ataques costeiros contra o Vietnã do Norte e com uso de marines. Tudo isso enquanto a Casa Branca prometia à população que a ofensiva não seria ampliada.
Governos mentem ou ocultam informações. E isso se transforma em estratégia fundamental para manipulação da opinião pública em tempos de conflito. Afinal, como diz a frase do senador americano Hiram Johnson, citada em 1918 e eternizada pelo jornalista Phillip Knightley, “na guerra, a primeira vítima é a verdade”.
Um exemplo recente: dias atrás, surgiram denúncias de que o governo de Bashar al-Assad, na Síria, teria voltado a usar armas químicas contra sua população. Até agora, o regime não se manifestou. E, não fosse o relatório de uma ONG, reverberado pela imprensa, o assunto permaneceria oculto. Outro exemplo: as armas de destruição em massa de Saddam Hussein, motivo falacioso que levou a administração George W. Bush ao Iraque, em 2003, nunca foram encontradas. Mais um? Centenas de comunicações de líderes aliados foram espionadas pela Agência de Segurança Nacional (NSA), inclusive durante o governo Barack Obama. A Casa Branca ocultou, e o escândalo só veio a tona por conta do WikiLeaks.
Mas mentiras, como os governos, não duram para sempre. Volta e meia vêm à tona pelo jornalismo investigativo, como no caso do Post. Ou porque alguém as denuncia. Principalmente porque, por trás de decisões políticas estão vidas comuns, como a de Quy, alteradas para sempre. Na maioria das vezes, para pior.