Para compreender os maiores protestos no Irã desde 2009, que já contabilizam pelo menos 12 mortos, é preciso mergulhar três camadas. À primeira vista, pode-se entender o fenômeno como uma revolta da população contra os arroubos imperialistas recentes do governo em busca de influência na região. Apoiado pela Rússia, o Irã (xiita) é um dos protagonistas da guerra fria local. Disputa com a Arábia Saudita (auxiliada pelos EUA e de maioria sunita no Islã) a hegemonia no Golfo Pérsico.
Há uma insatisfação de parte da população com o envolvimento do país em conflitos na Síria e no Iraque _ uma cobrança de retorno a uma espécie de "Irã first", versão persa do "America first" de Donald Trump. Em outras palavras, os manifestantes querem que o governo esqueça os conflitos externos e preste atenção no que realmente lhes interessa, o bolso.
Essa preocupação nos leva à segunda camada da explicação da crise: a questão econômica. Os protestos começaram na quinta-feira, 28 de dezembro, em Mashhad, cidade de 2 milhões de habitantes. Duas mil pessoas foram às ruas contra a alta dos preços e a má situação econômica em geral. No dia seguinte, as manifestações se propagaram por todo o país, chegando à capital, Teerã.
Cerca de 60% dos 80 milhões de habitantes do país têm menos de 30 anos e essa é a principal fatia atingida pelo desemprego. Cerca de 28,8% dos jovens estão fora do mercado de trabalho. Daí a reclamação para que o governo deixe de gastar energia e, principalmente, seus petrodólares com guerras, que, para o cidadão comum, não suas. Some-se a isso medidas de austeridade adotadas pelo presidente Hassan Rouhani desde sua chegada ao poder, em 2013, como as reduções nos orçamentos sociais.
Tudo isso são ingredientes do caldo de tensões deste início de 2018 no Oriente Médio. Mas é escarafunchando um pouco mais que se chega à terceira camada da crise— e a mais importante. A revolta significa um novo capítulo da batalha política interna entre políticos conservadores moderados e ultraconservadores. De 2013 para cá, os iranianos vêm dando sucessivas guinadas rumo ao centro, após uma década dominada pela extrema-direita, cujo representante mais famoso era o fanfarrão Mahmoud Ahmadinejad, aquele que negava a existência do Holocausto e que dizia que jogaria Israel no Mediterrâneo, lembra?
A abertura política iraniana começou com a eleição de Rouhani, evoluiu para um parlamento e uma assembleia de notáveis menos radicais, e evoluiu, em maio do ano passado, para a reeleição do presidente, que derrubou Ibrahim Raisi, o representante da linha-dura. Resultado mais concreto desses cinco anos foram o degelo da tensão com o Ocidente e a assinatura do acordo nuclear com os EUA ainda durante o governo de Barack Obama. Tratado, aliás, que os iranianos têm cumprido, conforme relatórios da Agência Internacional de Energia Atômica — a despeito da atual administração de Donald Trump, que já disse que não validará tal pacto e foi um dos primeiros a se manifestar, pelo Twitter, pelo fim do regime iraniano. Ruim com o centrista Rouhani, pior sem ele. Sua queda provavelmente não abalará as estruturas da teocracia dos aiatolás, mas tem poder de fechar as portas para o Ocidente e jogar o Irã de volta ao obscurantismo da era Ahmadinejad.