A mais famosa é a Geraldona, uma senhora de quase 40 anos. Para um boto, é bem velhinha, mas sua desenvoltura ao apontar para os pescadores a localização dos peixes ainda impressiona.
– Garante o sustento de muita gente – atesta Nilton Izidoro, 52, que há três décadas arremessa tarrafas na Barra de Tramandaí, onde o rio de mesmo nome se encontra com o mar.
Geraldona já treinou Coquinho e Bagrinho, filhos que agora cresceram e também se especializaram em mostrar onde estão os cardumes. Ou seja, não é só entre os pescadores que a atividade passa de geração em geração.
A chamada pesca cooperativa funciona assim: com a nadadeira para fora da água, o boto vai cercando as tainhas com movimentos circulares, empurra os peixes em direção à margem e, como se não bastasse, ainda ergue a cabeça para apontar o local exato do cardume – é como se gritasse "agora sim, atirem essas tralhas!". Pronto: todas as tarrafas se estendem ali, bem no ponto que a Geraldona, ou o Bagrinho, ou a Esperança, ou a Catatau indicou.
– A gente sabe qual é o boto por causa da nadadeira. A da Catatau, por exemplo, é mais baixinha – explica Nilton.
Essa inusitada parceria, embora já tenha existido em outros dois ou três países, só ocorre hoje em Tramandaí e na barra de Laguna (SC) – a rede britânica BBC chegou a produzir um documentário sobre o fenômeno na cidade catarinense.
Tema de inúmeros trabalhos acadêmicos, atração para turistas e veranistas, a pesca cooperativa agora encara uma incógnita no litoral gaúcho: a nova ponte entre Imbé e Tramandaí, se for mesmo construída onde está prevista, pode espantar os botos para sempre. Ao menos é o que dizem pesquisadores, ambientalistas e pescadores da região – segundo eles, o barulho, a movimentação de veículos pesados e a vibração dos pilares embaixo da água acabariam com a atividade.
Já sei que alguns discordam, também sei que a nova travessia é importante para o desenvolvimento da região, concordo que a ponte atual é insuficiente, e tudo isso precisa ser levado em conta, mas, vão me desculpar, patrimônio é patrimônio. Era só o que faltava a construção de uma ponte (ou de qualquer coisa que seja) não poder trocar de lugar para preservar uma das mais extraordinárias heranças culturais, ambientais e históricas do Litoral Norte.
Que fique claro: longe de mim ser contra investimentos – sou de Porto Alegre, conheço muito bem o buraco onde essa mentalidade retrógrada nos enfiou. Mas uma cidade só prospera de verdade se souber valorizar justamente o que tem de único, o que tem de genuíno, autêntico, diferente, singular.
Há quem diga que não, que a nova ponte, naquele local, não prejudicaria os rodopios de Geraldona e sua trupe. Mas, por enquanto, é tudo achismo. Já passou da hora de a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) vir a público informar, afinal, quais são os riscos dessa obra. Porque o show precisa continuar.