A faceta mais angustiante do julgamento da Kiss é a ausência de um bandido, um vilão, alguém que personifique o mal. Não estou dizendo que os réus são inocentes, longe disso. Até porque, vamos combinar, não são apenas pessoas más que podem causar o mal. Qualquer um pode fazer o mal – ainda que sem querer – e, numa sociedade civilizada, assumir as consequências dos próprios atos é uma obrigação de todos, não só dos malvados. Assim é a vida.
A questão é que, ao contrário de outros julgamentos históricos – que envolveram assassinato a sangue frio, tortura, abandono de criança, estupro etc. –, no caso da Kiss ficou difícil encontrar um monstro para abominar. E é sempre mais fácil quando existe um monstro: todo mundo quer ver um psicopata na cadeia, ou um homicida se ferrando, porque assim o bem vence o mal e pronto.
Mas o mundo, de vez em quando, se mostra menos dualista. No julgamento de uma das maiores tragédias da história do Brasil, os depoimentos desesperados de Elissandro Spohr, sócio da boate, e de Luciano Bonilha Leão, assistente de palco, não incitaram a fúria costumeira das redes sociais, pelo contrário: despertaram certa condolência. Porque não parecia haver ali uma dupla de facínoras, e sim dois homens em sofrimento.
– Só que as famílias sofreram mais! – alguém dirá, e eu concordarei sem hesitar.
Jamais ousaria comparar a dor da perda de um filho com qualquer outro tipo de suplício. Essas famílias foram destroçadas, arruinadas, e têm toda a razão em exigir punição exemplar aos responsáveis por tanto horror. E, que fique claro, os responsáveis precisam mesmo pagar.
Mas uma reflexão é inevitável aqui: todos nós, por melhor que nos consideremos, somos capazes de produzir o mal em algum momento. Como evitar? Fazendo o que é certo, se prevenindo, pensando nas consequências, calculando nossos atos. Porque, numa sociedade civilizada, você vai sempre responder pelos seus atos – e não importa se você é malvado ou não.