Não paro de receber e-mails relacionando o agravamento da pandemia no Rio Grande do Sul àqueles pacientes de Manaus transferidos para cá em fevereiro. A tese tem sido frequente nas redes sociais.
Segundo essas pessoas, a variante mais transmissível do vírus, que surgiu no Amazonas, chegou ao nosso Estado por meio dos doentes que vieram lá de cima. As autoridades daqui, portanto, teriam condenado à morte milhares de gaúchos quando aceitaram acolher os manauaras.
Vamos por partes.
Confesso que também fiquei apreensivo quando anunciaram a chegada dos pacientes de Manaus. Leigo que sou, me perguntei se a operação era mesmo segura, se havia algum risco de a nova cepa se imiscuir entre nós. Mas, em casos assim, que exigem uma avaliação mais técnica, prefiro sempre consultar entendidos no assunto – fiz isso naquela ocasião e também nesta sexta-feira (5), para escrever este texto.
Os infectologistas são unânimes: a hipótese de os amazonenses terem transmitido o vírus para qualquer pessoa no Rio Grande do Sul é praticamente nula. Primeiro, porque o procedimento para trazê-los e interná-los contava com um forte esquema de isolamento. Eles chegaram em aviões da FAB, familiares foram impedidos de acompanhá-los, as equipes que os receberam pareciam astronautas, o transporte nas ambulâncias era sempre individual e, dentro dos hospitais, os pacientes ficaram em alas separadas de todos os outros internados, inclusive dos que tinham covid.
– É muito mais fácil a P1 (variante que surgiu em Manaus) ter chegado aqui por meio de viajantes comuns. Me refiro a pessoas que se deslocaram em voos comerciais, ou em caminhões, ou em qualquer outra forma de transporte. Porque esse pessoal, ao contrário dos pacientes isolados, não se submeteu a qualquer medida de biossegurança – analisa o infectologista Ronaldo Hallal, membro do Comitê Covid-19 da Sociedade Riograndense de Infectologia.
Outro ponto é que todos os manauaras, quando chegaram aqui, já tinham pelo menos 10 dias de evolução da doença. André Luiz Machado, infectologista que atendeu pacientes transferidos para o Hospital Conceição, lembra que a maior necessidade de receber oxigênio ocorre justamente nessa fase – foi para isso, aliás, que os amazonenses vieram.
– Mas nessa mesma fase ocorre a diminuição da quantidade de vírus no trato respiratório. Ou seja, a capacidade de infectar outras pessoas fica bastante reduzida. No caso deles, com todo o controle que os cercava, a chance de transmissão era ainda menor – diz André Luiz.
É preciso ter cuidado – e responsabilidade – quando se empurra para alguém a culpa de algo tão sério.
Em resumo, é preciso ter cuidado – e responsabilidade – quando se empurra para alguém a culpa de algo tão sério. Alguns relatos por aí, ao se basear num achismo leviano, soam muito mais como xenofobia do que como contribuições para explicar o fenômeno triste que a gente atravessa.
O epidemiologista Jair Ferreira, professor da UFRGS, diz que os números da pandemia também descartam a hipótese. Se os pacientes de Manaus fossem responsáveis pela propagação da cepa, os municípios por onde eles passaram deveriam, nas últimas semanas, ter apresentado um crescimento de novos casos maior do que nas outras cidades.
– Porque, se a hipótese fosse verdadeira, os primeiros contaminados pela variante estariam nas localidades que receberam esses doentes. Mas Porto Alegre, Canoas e Santa Maria, por exemplo, tiveram um crescimento muito parecido com Caxias, Pelotas ou Novo Hamburgo – diz o epidemiologista.
Quer dizer: o melhor, sempre, é ouvir quem entende do assunto.