
Cheguei pouco antes das onze: o Cleiton varria o tapete e a Bruna preparava o almoço. Os dois me deram um abraço – fazia um ano que não nos víamos – e eu logo reparei na decoração. Eles agora tinham dois ícones culturais enfeitando o ambiente: uma reprodução da pintura O Grito, do norueguês Edvard Munch (1863-1944), e um pôster exibindo o beijo de Rhett e Scarlett, personagens do filme ...E o Vento Levou (1939).
– Achamos no lixo – a Bruna sorriu.
O novo lar é maior do que aquele que conheci em maio de 2017. Na época, o casal vivia embaixo do Viaduto Julio de Castilhos, em frente à rodoviária, em um canto com cama sempre arrumada, tapete tipo persa, fogão limpinho e mesa de jantar. Hoje, estão no canteiro central da Rua Mariante, no bairro Rio Branco, outra vez chamando atenção pelo capricho.
Em vídeo, conheça o lar e a história do casal:
– A nossa limpeza aproxima as pessoas – o Cleiton afirmou. – Tem dias em que a gente sai para trabalhar com a mesa vazia e, quando volta, ela está cheia de doação. Se fosse tudo sujo, se a gente fosse drogado, ninguém ia nem chegar perto.
Logo depois da reportagem que fiz com eles, um ano atrás, Cleiton Rodrigues, 28 anos, e Bruna Nascimento, 33, conseguiram comprar uma casa. Um imóvel isolado na zona rural do Lami, no extremo sul de Porto Alegre – só tinha uma peça, não tinha banheiro, era de madeira, mas o preço impressionava: apenas R$ 200.
– O dono era um cara bom, mas ruim para ele mesmo: viciado em crack. Disse que não queria mais casa nenhuma, que queria ir para a rua, aí a gente juntou dinheiro e comprou – disse o Cleiton.

Mas, já nas primeiras semanas, começaram a passar fome. O casal trabalhava catando latas, mas não havia sequer para quem vendê-las naquele fim de mundo. Sem dinheiro para a passagem, viram-se obrigados a caminhar até o Centro para trabalhar: saíam de casa às 10 da manhã, chegavam ao Centro às sete da noite.
– Tivemos que abandonar a casinha. A gente nunca tinha passado fome morando na rua – explicou a Bruna.
Enquanto conversávamos, uma senhora interrompeu para oferecer "um bolo de laranja quase inteiro". A Bruna agradeceu e o acomodou na mesa, entre a cesta de frutas e o pote de bolachas. Mais à direita, havia uma espécie de penteadeira improvisada, com um espelho sobre o tampo e quatro frascos de esmaltes.

– Tu te maquias ali, Bruna? – perguntei.
– Não, não tenho maquiagem. É só para ficar bonito – ela respondeu.
Fui embora em seguida, pensando na história dos dois. Cleiton começou a beber aos oito anos de idade. Aos nove, Bruna traficava. Foram se conhecer bem mais tarde, cheirando cocaína embaixo de marquises – ele sem casa porque cansara de apanhar do pai; ela sem casa porque a mãe morrera com aids.
Dois anos atrás, foram juntos à igreja, foram juntos ao médico e prometeram se limpar. Começaram, claro, limpando a própria casa. Casa, aqui, é sinônimo de lar, não de imóvel. Porque Cleiton e Bruna entenderam que, em qualquer lugar aonde eles forem, nunca mais deixarão para trás a dignidade.



