No guarda-corpo da ciclovia da Ipiranga, em Porto Alegre, algum entendido em plantas começou a pichar o nome das árvores. Publiquei essa história na segunda-feira. "Ipê-roxo", "pau-ferro", "hibiscus", "sibipiruna", "angico-vermelho" – os nomes seguem lá, com hifens e tudo, apresentando o vegetal que se espreguiça logo atrás.
Não cheguei a criticar o responsável, embora não o tenha elogiado. Mas arrisquei chamá-lo de "pichador erudito", o que incomodou alguns leitores – e também a vereadora Mônica Leal (PP). Mônica foi à tribuna da Câmara dizer que "é preocupante quando começamos a amenizar crimes":
– A forma como foi escrita (a coluna) não é nada educativa, muito pelo contrário, isso pode abrir precedentes. Temos que exigir punição para todo e qualquer pichador.
Três dias depois, voltei a levar bronca – desta vez por criticar duramente outras pichações, o que foi visto como "incoerência" por mais leitores. Mostrei o escandaloso estado do prédio da Faculdade de Medicina da UFRGS, cuja histórica fachada em estilo eclético, hoje abarrotada de rabiscos, parece uma montanha de lixo. Como pude condenar tão severamente esta situação e tratar com tamanha leveza a anterior?
Em primeiro lugar, aquele pichador amante das árvores – ainda que eu me divirta com a história – está errado. É um contraventor, não há dúvida, e, se for flagrado por um guarda, deve sofrer as sanções que merece. Concordo com a vereadora Mônica: todo pichador deve ser punido. Mas isso não me impede de lançar olhares diferentes sobre cada caso.
Porque uma coisa é roubar uma galinha, outra é assaltar um banco. Uma coisa é roubar para comer, outra é roubar dinheiro da merenda da escola. Alguém dirá que é tudo crime, mas, se a própria legislação prevê penas diferentes para gravidades diferentes, por que eu teria de achar todo crime igual?
Alguém discorda que atacar um patrimônio histórico, um prédio projetado em 1912 pelo lendário Theo Wiederspahn (1878-1952), uma joia tombada da nossa arquitetura, um símbolo da memória, da cultura e da beleza da cidade, seja muito mais grave, revoltante e abominável do que rabiscar um pedaço de ferro grosseiro à margem do Arroio Dilúvio?
É justamente essa resistência em enxergar os tons de cinza, as gradações entre o tolerável e o intolerável, entre o errado e o inadmissível, que às vezes parece nos empurrar para essa marcha de insanidade. Você é contra o PT, por exemplo, mas aí alguém levanta a mão para dizer que, veja bem, tem uma coisinha que o Lula fez que talvez seja...
– NÃO TEM NADA, EU ODEIO, EU ODEIO, EU ODEIO, EU ODEIO!!!!!!!!!!!!
Ou privatizações. Tudo bem, você não gosta delas, só que tem uma estatalzinha ali que, se formos analisar...
– NÃO TEM NADA, EU ODEIO, EU ODEIO, EU ODEIO, EU ODEIO!!!!!!!!!!!!
É justamente essa resistência em enxergar os tons de cinza, as gradações entre o errado e o inadmissível, que às vezes parece nos empurrar para essa marcha de insanidade.
Bom, aí não dá. Não há pensamento crítico que se sustente se apenas o branco e o preto existem. E, sobre as pichações, houve uma época em que elas realmente eram justificáveis – necessárias, inclusive.
Na Era Vargas e na ditadura militar, pintavam-se as paredes para alertar a sociedade sobre o regime tirânico. Porque, claro, só haviam sobrado as paredes: a imprensa fora censurada, a oposição fora cassada, toda divergência fora calada. Não havia formas de se comunicar, não havia redes sociais, então a pichação tornou-se uma rara via de contato entre a população e o outro lado.
Passado esse período de trevas, permaneceu uma aura romântica em torno de uma contravenção que, atualmente, não costuma servir para nada além de destruir. A maioria esmagadora das pichações não tem indicativo político, não incita reflexão alguma, não convoca a população, não prega qualquer mudança, não estimula a participação democrática nem coisa nenhuma: são apenas sinais ou nomes cifrados de gente tão inútil quanto egoísta.
Mas aquele entendido em plantas, na ciclovia da Ipiranga, me fez parar para ver uma sibipiruna, que eu nem sabia que existia. É um infrator, deve ser punido, mas não dá para comparar sua infração à dos idiotas que destruíram a fachada do histórico prédio da UFRGS.