Fui ao cinema ver Extraordinário e chorei, claro. Até o Kannemann choraria. Não é uma obra-prima, mas funciona muito bem justamente por isso: a história de Auggie Pullman – um menino de 10 anos que nasceu com o rosto desfigurado e vive acossado pelo bullying – é tão dolorida, e talvez fosse tão insuportável conhecê-la, que o tom açucarado do filme vira um mérito. É essa doçura que torna palatável uma história nauseante. Você chora nem tanto com a dor, mas sobretudo com a superação do garoto.
Lá pelas tantas, a mãe de Auggie, interpretada por Julia Roberts, ensina de um jeito amável uma regra de convivência não muito fácil para as crianças – e ainda ignorada por adultos.
– Entre falar a verdade e ser gentil, escolha sempre ser gentil – ela pede ao filho, rezando para que os coleguinhas adotem a mesma postura com ele.
O recado é claro: a sinceridade é cruel. A sinceridade machuca, humilha e maltrata, especialmente quando o interlocutor não quer a verdade. É um direito, aliás, não querer a verdade. Esses tempos, escrevi sobre o caso de um amigo que traiu a namorada e se arrependeu – chorava e tremia na minha frente, a culpa se derramando entre soluços. Queria contar para ela, dizer a verdade, implorar por perdão. Eu, ao vê-lo arrasado daquele jeito, ofereci-lhe um ponderado conselho:
– Tu cala essa tua boca, seu idiota.
Era só o que faltava. Ele faz a bobagem (ok, todo mundo erra), depois se arrepende (ok, é legal se rever), mas, em vez de assumir sozinho o sofrimento que causou a si próprio, obriga a pessoa que o ama a sofrer também. Usa sua crise de consciência não como ferramenta de autocrítica, mas como instrumento de destruição de quem, ao contrário dele, não tem culpa alguma.
– É que prefiro ser sincero...
Ora, a sinceridade, quando arrebenta a autoestima de alguém, não é uma virtude, é uma violência. O Paulo Sant'Ana, em uma crônica de 1997, escreveu algo que, naquela época, não soou tão polêmico como soaria agora. Sant'Ana avaliou que uma mulher, quando finge o orgasmo, pratica um ato de generosidade. Hoje dirão que não. Dirão que, ao fazer isso, ela apenas se anula como mulher para servir aos anseios e caprichos masculinos – o que pode ser verdade em muitos casos, mas em outros não é.
A sinceridade, quando arrebenta a autoestima de alguém, não é uma virtude, é uma violência
Porque, em qualquer relação – sexual, afetiva, profissional ou de amizade –, um homem ou uma mulher abdicarem eventualmente da sinceridade em nome, se não da realização, pelo menos do bem-estar do outro, não é uma renúncia aos próprios princípios. Ao contrário: é ser amigo. É ser solidário. É ser bom amante. É ser gentil, como disse a mãe do menino Auggie.
Não estou pregando a mentira como um valor, nada disso. Estou dizendo que uma condição para qualquer relação alcançar a paz é medir o uso da sinceridade e da verdade. Elas são ótimas, mas não quando um menino desfigurado quer ouvir que é bonito. Aliás, se você assistir a Extraordinário, no fim do filme já estará achando Auggie Pullman bonito.
Porque a gentileza, a solidariedade, a empatia, tudo isso muda uma verdade. Mas é preciso praticá-las.