Aos 15 anos, Walter Kannemann encontrou um adversário tão encruado quanto ele é, hoje, para os centroavantes da América. O inimigo era um colete que o mantinha ereto para ajudar na cicatrização de uma fissura em uma das vértebras.
Movimentar-se normalmente era uma tarefa complicada com o aparato, que só era retirado para tomar banho e dormir.
— Eu era pequeno, mas ainda me lembro de acompanhar as dificuldades que ele tinha e a angústia para voltar a jogar — conta Joaquín Kannemann, irmão caçula do zagueiro. Hoje com 18 anos, Joaquín tinha sete à época.
A lesão nas costas, que tirou Walter dos campos por mais de um ano, foi resultado do estirão da adolescência. O crescimento foi rápido demais, e os músculos não acompanharam. Ainda que a rotina de colete fosse difícil, o que mais lhe preocupava era o período longe dos gramados. Havia o temor de que o San Lorenzo, clube no qual jogava desde os oito anos, o dispensasse.
O receio da promessa chegou aos ouvidos de Fernando Berón, então coordenador das categorias de base do clube:
Era bem magro, daqueles habilidosos que vão para cima dos marcadores.
FERNANDO BERÓN
Ex-coordenador da base do San Lorenzo
— Chamei ele na minha sala para conversar. Disse que não tivesse receio de nada. Garanti que permaneceria no San Lorenzo.
As preocupações e dores da lesão não foram os únicos obstáculos dos primeiros passos da trajetória. Quem o vê com a camisa do Grêmio, a dar carrinhos precisos e espantar o perigo para longe da área de Marcelo Grohe, não imagina que a postura comprometida e aguerrida foi decisiva para que persistisse no futebol.
Berón fala com carinho do menino que viu desde muito pequeno. Busca na memória, mas não consegue precisar a idade da promessa quando a conheceu. Arrisca que tinha entre 11 e 12 anos. Berón era, então, técnico do time do San Lorenzo na categoria em que Kannemann jogava. O antigo professor do zagueiro fala em tom de quem comete uma inconfidência ao relembrar a posição que o ex-pupilo ocupava naqueles tempos:
— Vocês vão se surpreender, mas naquela época o Walter era um ponteiro. Nós jogávamos com três atacantes, e ele era ponta esquerda. Era bem magro, daqueles habilidosos que vão para cima dos marcadores.
O ex-coordenador da base do San Lorenzo, que hoje trabalha no Independiente, recorda-se especialmente de uma final em que seus comandados bateram o Boca Juniors por 3 a 0, com ajuda dos dribles de Kannemann.
Foi por esses tempos que veio a primeira pedra no caminho para se tornar jogador. Quando tinha 12 anos, seu pai, Pedro Antonio, que era membro da Gendarmería Nacional, força de segurança subordinada ao governo, foi transferido para Concordia, na província de Entre Ríos, a mais de 400 quilômetros de Buenos Aires. Walter queria ficar no alojamento do clube para seguir seu sonho. Preocupada, a mãe, Valéria, negou. De 15 em 15 dias, Kannemann fazia o longo trajeto até a capital argentina para seguir atuando pelo San Lorenzo. A família finalmente se dobrou à vontade do menino um ano depois: o pequeno Walter foi morar longe dos pais para seguir perto da bola.
— Aquilo me impressionou muito na época. Muitos meninos desistem com a distância da família, mas o Walter tinha determinação — lembra Berón.
O período de saudade dos seus parentes durou só mais um ano, até que o pai foi mandado de volta a Buenos Aires e a família Kannemann se reuniu novamente.
Lembro de um jogo em que ele cortou a boca, machucou os dentes e seguiu jogando. Em outro, lesionou o braço, foi enfaixado e voltou.
JUAN CARLOS CAROTTI
Técnico de Kannemann no time B do San Lorenzo
Passado o drama do colete, Walter começou a se tornar o jogador que hoje todos conhecem no Grêmio. Os músculos se desenvolveram, e logo os técnicos viram que seria melhor recuá-lo. Passou a jogar de volante pela esquerda, até que se firmou como zagueiro e lateral-esquerdo. O espírito de "faca nos dentes" já estava lá.
— Lembro de um jogo em que ele cortou a boca, machucou os dentes e seguiu jogando. Em outro, lesionou o braço, foi enfaixado e voltou. Todo o treinador gosta de ter alguém assim no time — elogia Juan Carlos Carotti, que o treinou no time B do San Lorenzo.
A primeira oportunidade na equipe principal veio em 2010, quando Diego Simeone era o treinador. Mas foi isolada: Kannemann atuou em um empate contra o Colón. Logo depois, Simeone foi demitido, e Walter passou ao time B.
Até que, em 2012, o técnico Ricardo Caruso o viu em um treino e gostou. Colocou-o em campo, e o jovem se tornou decisivo para que o San Lorenzo escapasse do rebaixamento no Campeonato Argentino. O gol que marcou de cabeça, na vitória contra o San Martín por 2 a 1, é apontado até hoje como um dos mais importantes da campanha.
No ano seguinte, seguiu como titular no time de Juan Carlos Pizzi que conquistou o título nacional. Com Edgardo Bauza, na campanha da conquista da Libertadores de 2014, tornou-se um décimo segundo jogador.
— Virou até piada entre os torcedores do San Lorenzo. Todo mundo sabia que o Bauza ia tirar o Ignacio Piatti (meia ofensivo) e colocar o Kannemann como um terceiro zagueiro quando o jogo se complicava — lembra Diego Paulich, setorista do San Lorenzo no diário Olé.
Reassumiu a titularidade no segundo semestre daquele ano, na preparação para o Mundial, em que fez seu melhor na tentativa de parar Cristiano Ronaldo e companhia na decisão. O Real Madrid venceu por 2 a 0.
Valorizado, foi vendido ao Atlas, do México.
— Alguns torcedores ficaram um pouco chateados, achavam que ele deveria ficar ou que podia ter saído por mais dinheiro. Mas, no geral, ele tem ótima imagem com a torcida do San Lorenzo. Essa entrega dele era muito valorizada — avalia Paulich.
No Atlas, viveu dias mais atribulados. A equipe vinha em mau momento, e Kannemann era criticado pelos cartões amarelos e vermelhos. Chegou ao Grêmio em julho de 2016.
Em Porto Alegre, vive com a namorada, Carolina Aladro. Reservado, de poucas palavras, foge ao estilo boleiro. Há, inclusive, vídeos na internet dos tempos de San Lorenzo em que os companheiros o apontam como o jogador que pior se veste no elenco.
Na Capital, prefere a calmaria de casa quando não está na Arena ou no CT. Em entrevista recente ao canal Esporte Interativo, disse que um de seus passatempos favoritos é assistir ao programa "Irmãos à obra", do canal Discovery, em que dois irmãos se encarregam de fazer reformas e encontrar novas casas para seus clientes.
— Ele está muito feliz. É um lugar mais parecido com a Argentina. Quando sai na rua, o reconhecem, pedem foto. Tem um carinho muito grande dos torcedores — comemora o irmão Joaquín, que até há pouco estava nas categorias de base do San Lorenzo — lateral-direito, ele busca outro clube para tentar seguir carreira.
Aguerrido, brigador e competente em campo, Kannemann é leal, correto e não carrega qualquer traço de estrelismo fora dele. Se a raça encanta quem o vê da arquibancada, a postura "pé no chão" conquista as pessoas mais próximas ao xerifão da área gremista. Tanto que, ao conversar com elas, a larga coleção de elogios dá impressão de que a entrevista é com algum tricolor fanático. Berón resume bem:
— É difícil acreditar, mas eu diria que a pessoa Walter Kannemann é ainda melhor do que o jogador.