"Não há como se levantar
Suas mãos estão atadas; suas pernas, amarradas
A luz brilha em seus olhos
Você enxerga o fio da navalha
E abre a boca para chorar
Não adianta: a lâmina vai entrar!"
Como você interpreta esses versos? Que cena você enxerga nessa meia dúzia de linhas?
Em 1985, há exatos 30 anos, uma associação de mães liderada por Tipper Gore, mulher do então senador Al Gore, sacudiu os Estados Unidos ao abrir uma guerra pública contra dezenas de bandas de rock e suas gravadoras. Na avaliação dessas mães, letras como a reproduzida acima, do grupo de heavy metal Twisted Sister, exaltavam o estupro, a violência, as drogas, o álcool, o sexo e - acho curioso o próximo item - a masturbação na adolescência.
A ideia era proibir as rádios de tocar uma imensa lista de músicas. E também obrigar as gravadoras a inserir um selo de "alerta aos pais" em capas de discos malcriados. Foi um rebuliço nacional: senadores apoiavam a iniciativa, fãs de rock protestavam nas ruas, a mídia repercutia o caso dia e noite, músicos se enfureciam em entrevistas. Até que, no fim do ano, o Senado convocou uma audiência histórica com a presença dos astros John Denver, Frank Zappa e Dee Snider, vocalista e compositor do Twisted Sister. As representantes da associação de mães compareceram indignadas, rugindo em defesa da família e dos valores cristãos.
Ao explicar a letra de Under the Blade (Embaixo da Lâmina), aquela reproduzida no início da coluna, Dee Snider revelou que a música fora composta quando o guitarrista de sua banda estava no hospital, apavorado porque se submeteria a uma cirurgia na garganta. Não havia qualquer menção a estupro ou violência, como a líder das mães, Tipper Gore, insistia em alegar.
- Se você procurar estupro e violência na letra, pode encontrar. Mas, se procurar cirurgia, vai encontrar também. A única violência da música está na cabeça da senhora Gore - concluiu o metaleiro, e ouviu-se um "oooh" na plateia.
Corta para o Brasil, três décadas depois.
Na semana passada, o cantor baiano Bell Marques, ex-vocalista do Chiclete com Banana, assinou um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público para alterar a letra de sua nova música, Cabelo de Chapinha. Bell Marques foi repudiado por centenas de fãs no Facebook e sofreu pressão de movimentos sociais pelo suposto conteúdo racista da canção. Dizia um trecho:
"Minha nêga, vai lá no salão fazer aquele corte que seu nêgo gosta
Me traz seu coração, porque essa noite só vai dar eu e você
Com esse amor ninguém pode; só água na cabeça pra apagar o fogo
Ô mainha, mas eu só gosto de cabelo de chapinha"
Sem comprar briga, o cantor se desculpou com os fãs e informou que o acordo para trocar a letra foi iniciativa dele. Mas esclareceu que a música havia sido composta inspirada em um homem que adora sua companheira e que pede a ela, com carinho, para se arrumar do jeito que ele gosta.
De fato, pode haver racismo - e também machismo - na canção se alguém quiser ver racismo e machismo. Quem preferir encontrar um afetuoso pedido de agrado à namorada, na intimidade de um casal, não terá problemas para localizá-lo. O preocupante é que, se há 30 anos eram grupos conservadores que se empenhavam em calar artistas, hoje o papel de censor ganha força entre defensores de causas justas e progressistas.
Esquecem-se de que música, embora por vezes cumpra a função de entretenimento, ainda é arte. E toda arte pode ser contestada, mas só sociedades arbitrárias podem ameaçar a liberdade de exercê-la. Alguém perguntará o de sempre, se então está liberado enaltecer o nazismo e dizer barbaridades contra negros em nome da arte.
Claro que não. Apologia e incitação ao crime são, sim, um crime. Mas há apologia ao crime na canção de Bell Marques? Bem, se você quiser, talvez encontre até cirurgia.