Trabalhei numa rua onde havia uma árvore torta. Ela cresceu para os lados, invadindo a calçada com seu tronco diagonal, mas a vizinhança gostava dela assim. Um dia, a cortaram. Fiquei furiosa e fui em busca de culpados. Defendia a causa ecológica, as ruas verdes, achava o tronco propício para as crianças subirem. Considerei o corte uma espécie de intolerância com a diferença. Associava a estranheza do vegetal com outros tipos de diferenças que deviam ser respeitadas.
Se em nome de uma boa causa nos abrigarmos na intolerância estreita egoísta, isso tem outro nome: hipocrisia.
Estava cheia de razão, mas o sentimento seguinte foi vergonha. Explicaram-me que a posição do tronco representava um risco para os deficientes visuais. Não havia como percebê-lo com a bengala e já havia ocorrido colisões. Conclusões precipitadas podem ser um perigo.
Numa mesma rua de Porto Alegre, há duas instituições cujos frequentadores precisam ter cuidado ao transitar. É o endereço da Ucergs (União de Cegos do Rio Grande do Sul) e da Fadem (Fundação de Atendimento de Deficiência Múltipla). Um pequeno trecho da cidade onde circula uma peculiar concentração de bengalas e cadeiras de rodas.
De lá foram removidas três árvores pela prefeitura. Duas delas tinham enormes raízes que quebravam a calçada. A terceira, por velha, tinha riscos de tombar. As duas instituições precisavam dessa retirada para viabilizar o trânsito das cadeiras de rodas dos pequenos e para instalar uma calçada tátil. Você, que enxerga tudo, talvez não compreenda o valor daquelas linhas amarelas que norteiam os deficientes visuais. Porém, houve polêmica, alguns vizinhos reagiram com a mesma desinformada fúria que senti no corte da minha árvore torta, murmurando crime ambiental.
Eu tenho um pensamento obsessivo: ando por aí sempre conferindo se minha hipotética cadeira de rodas passaria. Há sempre alguma ameaça que nos inquieta, a minha é essa. Soube de uma mulher que andava vendada em casa, preparando-se para uma futura cegueira, tão fantasiosa quanto minha dificuldade de locomoção. Também convivo com cadeirantes e sua luta pela acessibilidade. Acredite se puder, chega a ser perigosa a fúria de vários cidadãos que se locomovem sem problemas, reivindicando vagas de garagem especiais para os que delas precisam.
Graças às crianças da Fadem e aos associados da Ucergs, a Rua Frei Henrique Golland Trindade pode tornar-se um lugar ímpar. A tolerância com as diferenças nos jeitos de ser e transitar e a delicadeza de pensar no outro são uma oportunidade para o exercício da gentileza e da empatia. Elas fazem mais pela elevação da nossa alma do que muitas preces, discursos moralistas e sermões ambientais.
Compreendo que os vizinhos incomodados se identifiquem com a causa ecológica, como já me ocorreu. Mas penso que a consciência ambientalista inclui a compreensão das diferenças entre os reinos animal e vegetal, entre os diferentes tipos de bichos que somos, entre os diversos modos de ser das pessoas. O equilíbrio entre tudo o que habita na terra é cheio de sutilezas. A natureza é surpreendente e nada mais lindo do que compreendê-la em uma perspectiva maior. Se em nome de uma boa causa nos abrigarmos na intolerância estreita egoísta, isso tem outro nome: hipocrisia.