Foi inesquecível aquele show do Gonzaguinha em Porto Alegre nos anos 1980. Lá pelas tantas, falou sobre a Elis. Todos ficaram olhando. Aí, ele disse:
– Em todos lugares aonde vou, falo o nome da Elis e sou aplaudido...
Passados alguns segundos, após uma paralisia geral, todos aplaudiram.
E eu, do alto da minha adolescência, pensando: que gente besta!
Pois bem, somos assim: meio bestas, às vezes.
Em primeiro lugar, porque tendemos a desvalorizar o que é nosso, quando deveria ser o contrário, sempre o contrário. Tínhamos de ver naquilo que temos familiaridade um motivo a mais para ter carinho especial e bons sentimentos.
O gaúcho tende a se desvalorizar ou se valoriza em excesso, também algo chato.
Mas, sobretudo, o gaúcho adora desvalorizar quem está ao lado ou o que é seu.
Sabe a história do escorpião vocacionado a puxar sua presa pra baixo?
Toda essa lengalenga serve para este colunista falar sobre nossas praias do querido Litoral Norte. E, evidentemente, defendê-las!
Quanto este texto for publicado, é onde estarei, com muito prazer.
A coluna está tirando alguns dias de descanso.
Espero que vocês concordem que são merecidos...
E o Litoral Norte gaúcho é o porto seguro e acolhedor do colunista.
Não só por questões afetivas, que elas existem (veja texto na sequência).
Também porque, ora, praia é praia.
E a praia onde o cara vai desde criança é ainda mais deliciosa.
Pôr os pés na água, pisar na areia, caminhar charlando com os filhos...
Aí vem aquele sujeito, com sobrancelha levantada e jeito de boçal, pra contar a piada surrada: ao desenhar a costa brasileira, Deus parou em Torres para descansar por sugestão do diabo, que surrupiou a caneta e concluiu o desenho com um traçado reto, sendo assim a nossa nada sinuosa orla.
Ah, parem com isso!!!
Tempos atrás, veio a notícia que me deixou feliz, de alma lavada com água do nosso mar: enquanto o litoral catarinense era todo interditado, faz uns anos, o nosso resistia em boa parte da sua extensão justamente por causa da sua tão castigada natureza. O fato de ser mais aberto afastava as porcarias.
– Rá!!! – disse eu. – Logo a natureza agora é nossa aliada!
Sensacional!
Nosso litoral é tri! Fica só a pouco mais que cem quilômetros de Porto Alegre. Coisa boa pegar a Freeway ouvindo música, seguir em linha reta e, já na Estrada do Mar, sentir o cheirinho gostoso da maresia e a brisa dos bons sentimentos.
Até vou contar pra vocês: meu cãozinho, o Paul, começa a latir assim que a gente chega na Estrada do Mar. E todos rimos! Ele sabe que vai ficar naquela área toda dele, cercado de quem ama, eu, a Dione, as crianças.
Dormir com o barulho do mar, escrever vendo a praia, caminhar na orla, ficar só de calção, almoçar quando der na telha, relaxar, encontrar amigos, lembrar histórias gostosas... isso é praia.
Reproduzo aqui, então, minhas reminiscências infanto-juvenis:
O maior pior litoral do mundo. O melhor pior litoral. Já ouvi de tudo a respeito da costa gaúcha. Até piada: Deus se esmerou ao desenhar o Brasil, perfilando-o de norte a sul. Quando ia chegando ao final, cansou-se e fez logo uma reta... Outro dia, um querido colega catarinense, o Piangers, fez troça do nosso Litoral, num texto divertido. Muita gente caiu de pau, alguns seguindo a triste tendência atual de intransigência e agressividade.
Pois bem. Vou tentar aqui mostrar o porquê de nosotros gaúchos, mesmo sabendo das limitações naturais abençoadas pelo traço divino, defendermos nossas praias. Tem, aí, um forte elemento emocional. Sendo assim, parto da aldeia para alcançar o mundo.
Sabe o edifício Aymoré, um caixotão muito bem preservado que ocupa quadra inteira à beira-mar e que já abrigou a rodoviária e o clube de Capão? Foi lá que a civilização se insinuou na nossa orla. E aquilo, para mim, era sonho em vigília, nos anos 1970 e 80. Posso assegurar que eu e minha turma, cujos vínculos de amizade se perpetuaram, descobrimos algo como 80% dos mistérios da vida naquele lugar.
Exemplo: no início dos amargos anos 70, vivi lá minha primeira experiência política. O síndico queria proibir as bicicletas no entorno do prédio. O que fizemos? Lobby, ora. Argumentamos com nossos pais, com os amigos deles, pedimos voto contra o "arbítrio" e nos imiscuímos entre os carros para espiar a reunião de condomínio, que ocorria na garagem. Ao final da "plenária", vitoriosos, deixamos os esconderijos e saímos, por entre os adultos sentados e pasmos, pedalando ao redor da mesa e gritando "vivam as bicis!".
Era em Capão que eu comprava pãozinho pra a minha avó, na Sepé, dando os passos inaugurais de pequeno homem, e buscava o jornal ansioso por notícias do Grêmio. Foi lá o primeiro beijo, numa morena com gosto de hortelã. Tínhamos o pomposo Atlântico Sul Futebol Clube, rival do Destreinados Colors – o tempo me deixou mais simpático ao "Destreinados". Houve as primeiras desilusões amorosas. Olhávamos Marte no telescópio comendo xixo. Pescávamos de tarrafa. Víamos cineminha projetado no pátio. Sacaneávamos. Fazíamos reuniões dançantes, o jogo da salada de frutas com as gurias – aqueles beijinhos eram o céu. Ganhávamos torneios de futebol no Farol. Depois, "bebemorávamos". Os cabelos cresciam. Pintávamos o rosto com as máscaras da banda Kiss para pular o Carnaval sem perder a identidade. Descobri Sargent Peppers. E voei até aqui.
Citei, acima, três vezes a palavra "beijo" – uma em inglês. Pois deixo beijos ao Pedrinho, ao Rodolfo, ao Cláudio, ao Flávio, ao Maurinho, ao Gordo, ao Paulinho, ao Caco, ao Felipe, ao Beto, à Clarice, à Lilian, à Flávia, à Luciana, à Cláudia, ao Marcello... E ponho o ponto final neste texto, sem jamais pô-lo nas melhores recordações da vida.