Passada a votação no Senado, com o resultado já esperado, a presidente Dilma Rousseff vive seu afastamento medindo os desdobramentos de um impeachment controverso e de um novo governo, liderado por Michel Temer, que, de seu lado, busca respaldo. Se o incitamento para os movimentos sociais irem às ruas são vistos como uma reação de efeito questionável, os governistas desconfiam muito mais do apoio "bolivariano".
Em tese, a Venezuela de Nicolás Maduro é vista como aliada, mas na prática isso está longe de ser visto com bons olhos. Os contatos naturais do ex-assessor para assuntos externos Marco Aurélio Garcia e do líder sem-terra João Pedro Stédile com representantes de Maduro constrangem boa parte do PT.
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"O julgamento da conduta de um presidente deve distinguir entre atos que tenham a ver com responsabilidades do exercício presidencial e os que se relacionam com seu comportamento pessoal. Faltas administrativas não podem ser aludidas para justificar o desconhecimento do mandato popular outorgado a um presidente (...). Significa, na prática, um golpe de Estado. (...) A região enfrenta a ameaça de uma ruptura democrática", escreveu Garcia em carta à Unasul.
Na linha de frente, mesmo, estão gente como o ex-chanceler Celso Amorim, o economista Paulo Nogueira Batista Jr e José Graziano, diretor-geral da FAO (braço da ONU para alimentação e agricultura). Os contatos, principalmente de Amorim, são com França, Estados Unidos e China. A Venezuela é vista no mínimo como "irrelevante", e o apoio venezuelano tem sido interpretado como contraproducente. A manifestação morna do governo argentino é analisada como mais favorável a Dilma.
Os petistas evitam se manifestar abertamente, porque não querem rejeitar apoios explícitos, mesmo que de eficácia duvidosa. Mas a chanceler argentina, Susana Malcorra, foi quem provocou impacto mais positivo ao dizer que se preocupa com os questionamentos de diferentes forças políticas à legitimidade do afastamento.
– Quando debatem sobre legalidade e legitimidade, a situação fica complexa. Esperamos que este processo termine, para não se acentuarem as necessidades e as ansiedades do povo brasileiro – disse.
A chanceler resume a relevância, para a Argentina, do que ocorre no Brasil:
– Não é só o grande vizinho e sócio que temos, mas também um jogador que condiciona nossa capacidade de fazer as coisas. Nos une a a amizade, a história. A crise nos afeta, provoca impacto e nos dói.
Depois, Susana relatou fato conhecido nos bastidores do Planalto: o presidente Mauricio Macri e Dilma vinham mantendo boa relação, afinados inclusive na rejeição aos métodos do governo venezuelano, em especial por causa dos presos políticos.Susana ainda comentou:
– Ela (Dilma) deve estar passando por um momento muito duro. Me pergunto se o gênero não é um elemento em consideração nestes processos.
Antes dessas declarações, Susana dissera que as instituições brasileiras estão consolidadas e que tudo é legal. Também afirmara que Macri dialogará com Temer. Quem inicialmente saiu em defesa de Dilma foram os seguidores da ex-presidente Cristina Kirchner, com quem a brasileira tinha relação difícil. Cristina, aliás, calou-se.
Maduro tenta equiparar os contextos
Os apoios explícitos a Dilma partiram de Uruguai, Chile, Equador, Cuba, Bolívia, El Salvador e Venezuela. Os governos salvadorenho e venezuelano até chamaram os embaixadores no Brasil para consultas.
– Esse apoio não agrega. Seu mérito é duvidoso – disse um petista que não quis ser identificado, garantindo que não há emissários dilmistas em relação aos vizinhos, porque seria "artificial" e "inócuo".
Qual o raciocínio? A estratégia de Maduro é muito mais em defesa própria do que de respaldo sincero a Dilma. Ao pôr no mesmo nível o impeachment brasileiro e o referendo revogatório venezuelano, ele embaralha as cartas e confunde. O impeachment, como disse a argentina Susana Malcorra, provoca dúvidas em termos de legitimidade, porque depende da existência de um crime de responsabilidade. O referendo revogatório é instrumento que não dá margem a dúvidas. Previsto na Constituição, trata-se de um recall político no meio do mandato presidencial, e as circunstâncias venezuelanas tornam a revogação uma quase certeza.
Os petistas consideram apoios válidos os do ex-presidente uruguaio José Mujica, com sua respeitabilidade, e de jornais como o americano The New York Times e o britânico The Guardian. As declarações da chanceler argentina também repercutiram bem. Dos "bolivarianos", a ideia é, no mínimo, evitar o endossamento.
O ministro das Relações Exteriores do governo Temer, José Serra, repudiou manifestações de Maduro. Mas o objetivo maior não é fazer uma reprimenda. É amplificar um apoio ruim para Dilma, colando-a aos "bolivarianos". A preocupação se dá em relação à Organização dos Estados Americanos (OEA), órgão integrado pelos EUA e que até há pouco não aceitava Cuba, cujo secretário-geral, o uruguaio Luis Almagro, condena Maduro e apoia Dilma. Maduro acusa-o de ser "agente do imperialismo", mas não explica como, ao mesmo tempo, defende o governo petista.
"Os argumentos apresentados, além de errôneos, deixam transparecer juízos de valor infundados e preconceitos contra o Estado brasileiro. Além disso, transmitem a interpretação absurda de que as liberdades democráticas, o sistema representativo, os direitos humanos e sociais e as conquistas da sociedade brasileira se encontrariam em perigo. A realidade é oposta", disse Serra, em nota à Unasul.
O secretário-geral da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), o igualmente moderado ex-presidente colombiano Ernesto Samper, também critica o impeachment, mas o órgão que ele representa é visto como "bolivariano" e, portanto, parcial. Enquanto isso, de um lado Temer tenta mostrar legitimidade, assessora-se de gente como o diplomata Sérgio Amaral e joga com o peso econômico do Brasil para calar governos como o venezuelano. De outro, o PT aposta no desgaste de um governo que uma fonte petista, recém-chegada da Europa, assegura ser visto como "caricatural", em especial depois da formação do novo ministério.
Rafael Benke, presidente do Conselho Curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), reconhece as rejeições, mas as vê como "pontuais" e "reversíveis". Para tanto, Serra recebeu, de Temer, a missão de ser explicativo, procurando mostrar aos outros países que o processo brasileiro é legítimo.