A charge que mais apreciei na virada do ano foi desenhada pelo querido colega e amigo Gilmar Fraga, ilustrador e cartunista de Zero Hora. Mostra o Ano Velho – representado por um idoso aparentemente cansado – retirando-se de cena com um globo achatado no ombro, enquanto o Novo – um menino serelepe – entra em campo com o planeta redondo nas mãos.
Ainda que um desenho como esse costume suscitar múltiplas interpretações, não há como desvinculá-lo do atual momento político do nosso país, até mesmo pela coincidência da virada de ano com a troca de comando no governo. Mas não se assustem, leitores e leitoras, não vou remexer na polarização que ainda divide famílias e amigos, pois estou entre os que torcem por ampla e geral reconciliação nacional – evidentemente que com a responsabilização de quem, nesse contexto, comete algum tipo de crime.
O foco desta crônica é o terraplanismo geográfico propriamente dito, a crença persistente de que quem for além da Antártida despencará no abismo. A charge do Fraga expressa mais do que uma sátira política: pessoas do nosso tempo realmente acreditam que o planeta tem o formato de um disco de vinil coberto por uma abóbada com o Sol, a Lua e as estrelas movimentando-se apenas no espaço delimitado por essa espécie de teto.
Claro, uma crença dessas só pode ser justificada com muita teoria da conspiração. A principal delas é a de que a Nasa, a agência espacial norte-americana, seria a responsável pela “mentira” do formato esférico da Terra, com o propósito de monopolizar o poder econômico e financeiro no mundo. Por isso, argumentam os terraplanistas convictos, as bordas do nosso disco de vinil são extremamente vigiadas para que ninguém possa comprovar a verdade.
Parece coisa de maluco, mas não é bem assim. Embora essa teoria predominante na Antiguidade tenha sido refutada pela ciência há quase dois mil anos, recentemente – em 1956, mais exatamente – foi fundada na Inglaterra a Sociedade da Terra Plana, que conta com adeptos e simpatizantes em todos os continentes. No Brasil – vejam só! – uma pesquisa feita pelo Instituto Datafolha há menos de três anos concluiu que 7% da população acredita no formato achatado do planeta, o equivalente na época da 11 milhões de pessoas.
Seria esperar muito que toda essa gente fosse embora com o Ano Velho. Ainda que vivam em outro mundo, na verdade pertencem ao nosso, que, por enquanto, é único e de todos. Apertemo-nos, pois, para que nossa esfera flutuante termine o ano menos esvaziada.