Uma vez o saudoso amigo Moacyr Scliar me disse que sentia orgulho, mas também morria de medo, quando alguma obra sua era transposta para cinema, teatro ou televisão. Diretores e roteiristas jamais se conformam em seguir fielmente o enredo do escritor, até mesmo porque, na maioria dos casos, o filme tenderia a se tornar extenso, arrastado e desinteressante. A linguagem do movimento é outra, isso é fácil de compreender.
O respaldo legal para as transformações (às vezes, deformações) inclui informar previamente ao público que se trata de uma produção baseada, adaptada ou inspirada na obra original. Esse aviso dá uma espécie de salvo-conduto aos diretores para incluir personagens, suprimir outros e até acrescentar fatos inexistentes à história, com o propósito de dar o chamado efeito dramático ou até mesmo um sentido diferente do imaginado pelo autor.
Até aí, tudo bem. Não é incomum que os leitores dos livros fiquem incomodados com as mudanças e critiquem duramente a versão animada, mas também cabe reconhecer que, às vezes, diretores talentosos conseguem melhorar o relato original. Só fica difícil de entender – e de aceitar – que um fato seja completamente distorcido, como a colocação das palavras de um personagem na boca de seu adversário político, razão maior da polêmica em torno da série O Mecanismo, do reconhecido diretor José Padilha. Ao atribuir ao personagem de Lula a manifestação do senador Romero Jucá sobre "estancar a sangria" da Lava-Jato, o homem da Tropa de Elite comprometeu seu trabalho e deu munição aos seus críticos.
Ou, talvez, tenha tido uma premonição, pelo que se tem visto nos últimos dias.
Ainda assim, o episódio me fez lembrar uma conhecida anedota do folclore político em que um orador utilizou citação de seu rival para justificar tese contrária, sendo imediatamente interrompido pelo aparte do citado:
– Não ponha suas aspas nas minhas palavras!
A pisada na bola de Padilha desconsidera o trabalho jornalístico criterioso do repórter Vladimir Netto, autor do livro que inspirou a série. O jornalista procurou reconstituir os fatos, sem dar opinião. E as duas coisas nem sempre coincidem, como contou o ex-presidente Obama em entrevista ao apresentador David Letterman, reproduzindo diálogo entre dois colegas de senado.
– Posso não ter a sua sapiência, mas tenho direito à minha opinião - argumentou um.
O outro bateu na pleura do princípio que rege as fake news:
– Você tem direito à sua opinião, mas não aos seus próprios fatos.