Há uma semana, o Palmeiras foi campeão da Supercopa em cima do Flamengo em um eletrizante 4x3 em Brasília. Antes da decisão, o time carioca soava favorito porque havia se reforçado sem perder ninguém. O paulista perdera dois titulares, Danilo e Gustavo Scarpa, sem contratar ninguém. A presidente Leila Pereira teve a coragem de tirar verba da escola de samba Mancha Verde e era xingada nos jogos do Palmeiras por razões que não eram as do campo.
Abel Ferreira, um dos melhores técnicos do mundo em tempos atuais, temperou todos os ingredientes em seu caldeirão e arrebatou, com todos os méritos, o primeiro título da temporada. Era para ser o assunto principal desde aquele dia, afinal, a conquista se deu sobre um gigante endinheirado e cheio de torcedores Brasil afora.
No entanto, o português virou assunto e motivo críticas nos mais diferentes tons a partir, outra vez, do seu destempero à beira do gramado. A cereja azeda do bolo do seu equivocado comportamento foi o chute no microfone de TV colocado ao lado do reservado. Como não poderia deixar de ser, Abel Ferreira foi expulso. Passara o jogo desrespeitando bandeira, árbitro, quarto árbitro, tudo o que representasse a autoridade que ele reiteradamente contesta. Como adereço, um ato hostil contra um jogador adversário, Arrascaeta, com quem pareceu dividir uma bola imaginária fora do campo.
Na mais recente vitória do Palmeiras no Paulistão, o treinador falou sobre suas atitudes que se repetem, reconheceu que precisa melhorar no quesito e se queixou de uma hipotética perseguição. Deixou dúvidas sobre o futuro, embora tenha sido contratado até o fim de 2024. No acordo que tem com a esposa, precisa vender um carro toda que vez que dá mau exemplo. Mas se gabou de poder comprar, pelo mesmo acordo, um carro novo toda vez que conquista um título. Na entrevista, oscilou todo tempo entre se sentir vítima de uma imaginária perseguição e prometer mudar para melhor seu comportamento à beira do gramado.
A discussão, a partir deste combo, se voltou à imprensa, como acontece rotineiramente em episódios intensos. Teriam os jornalistas, alguns deles, excedido na crítica? Teriam valorizado mais a atitude destemperada do treinador do que o espetacular título conquistado pelo Palmeiras? Toda vez que ouço falar em imprensa como um bloco monolítico sobre o qual se tecem elogios — e, principalmente críticas —, não consigo evitar o estranhamento de que as pessoas não entendam que não existe uma voz única na imprensa. Existe, sim, uma diversidade enorme de pontos de vista que variam argumentos, interesses e campos de visão.
O extrato desta impressionante mistura resulta no que se costuma chamar de opinião pública. Ela costuma se formar depois de todos os motivos expostos por todos os lados. Como o futebol lida todo tempo com paixão, o que por si só traz o irracional, não existe consenso em tema tão denso.
É evidente que Abel Ferreira precisa mudar. Não faria um décimo do que faz se estivesse trabalhando na Europa. Disse que o que ele fez em Brasília já viu Jurgen Klopp e Pep Guardiola fazendo. Sofismou. O alemão e o espanhol jamais chegaram perto dos surtos regulares do português. Se fosse eventual, era razoável colocar na condição humana a razão dos excessos. No caso de Abel, porém, o comportamento é habitual. Não há jogo em que o técnico palmeirense passe em branco em relação à autoridade do árbitro. Que discorde, faz parte. Ele tem um lado, está envolvido, quer vencer, é da natureza do seu ofício. Porém, o tom é sempre alto demais. Muito mais do que uma oitava acima. E a crítica feita a Abel naquele jogo tão importante cabe a todo treinador que faça seu faroeste particular no seu reservado.
Um técnico é mais do que o estrategista que escala e formata seu time para vencer o outro. Ele é indutor de comportamento de quem torce, de quem está em formação, de quem vê nele um símbolo real de sucesso. Ele é monitor dos próprios liderados, que tendem a seguir o comportamento do líder. É óbvio que um líder tem responsabilidade com seus liderados. Quem tem seu tamanho não pode desconsiderar que é, sim, responsável por aquilo que cativa.
Tanto se valoriza o talento de Abel Ferreira como treinador que ele está cotado para ser o primeiro estrangeiro a dirigir a Seleção Brasileira. Já houve brasileiros dirigindo Portugal, Oto Glória e Luiz Felipe são reconhecidos e aplaudidos por portugueses e portuguesas. Agora, é o Brasil que aplaude, admirado, o espetacular trabalho de Abel Ferreira. Este aplauso legítimo não nubla o óbvio desvio de comportamento que o treinador apresenta às quartas e domingos temporada afora. E a crítica a tanto destempero, descontados os excessos, é tão legítima quanto o elogio que Abel Ferreira faz por merecer em seu trabalho fantástico.
Já recomendei uma vez neste espaço e reitero a recomendação da leitura do livro que Abel Ferreira escreveu após conquistar sua primeira Libertadores no Palmeiras. O curioso é que a capa emblemática traz uma foto de Abel com um dedo indicador em cada lado das têmporas que ilustra o título Mente Fria, Coração Quente. A foto sugere que ele consegue manter gelado o cérebro responsável pelas decisões que o fazem tão competente.
Por que Abel Ferreira passou a ser mais discutido do que nunca em pleno fevereiro de 2023? Porque o ciclo Tite acabou na Seleção e não há um brasileiro unânime que possa assumir sem traumas o time brasileiro para levá-lo ao título na Copa de 2026. Abel Ferreira, aliás, me parece só não ser unanimidade por causa deste tempero que, de tão impressionante, rivaliza como pauta com os títulos que ele conquista treinando o Palmeiras desde sua chegada. Inteligente que é, o treinador deve ser capaz de adequar seu comportamento a moldes civilizados que não atrasem sua brilhante carreira e permitam que ele seja, com todos os méritos que reúne, o treinador da Seleção para Canadá/México/Estados Unidos.
Fosse eu consultado, recomendaria Abel Ferreira para comandar o Brasil. Com a condição de que não persiga a vitória a qualquer custo e não repita indeterminadamente suas transtornadas ações quando soa o apito e o jogo começa. Quero ser representado por um profissional que eu admire e não me cause qualquer constrangimento ou vergonha. Pode ser Abel Ferreira. Se ele agir de fato rumo a esta metamorfose civilizatória dentro dos 90 minutos em que seu time tenta vencer o adversário.