O que o Flamengo de Jorge Jesus foi por menos de um ano, o Palmeiras está sendo pelo terceiro ano consecutivo. O projeto carioca foi afetado pela pandemia, JJ disse no "Bem, Amigos" que a solidão o estava devastando no Rio de Janeiro no auge do isolamento. Então, decidiu voltar para perto da família em Portugal.
Até hoje o Flamengo não reencontrou o rumo, talvez demore. Já o Palmeiras, combinemos, encaixou de um jeito que põe todos os rivais abaixo do seu nível. Não é certo que vá ser tri da Libertadores, mas dificilmente deixará de conquistar um dos três títulos que ainda disputa.
Embora me pareça completamente insensato o clube paulista pagar aproximadamente R$ 3 milhões por mês para Abel Ferreira e sua comissão técnica, o fato é que o sucesso decorrente do comando do português faz o Palmeiras retroalimentar o dinheiro que entra e torna o altíssimo investimento viável e rentável.
Meu amigo Lucianinho Périco me deu de aniversário o livro "Cabeça Fria, Coração Quente", que nada mais é do que um passo a passo sincero e detalhado do cotidiano de Abel e seus subordinados para que o Palmeiras seja hoje o melhor time da América Latina.
É verdade que o grande defeito de Abel, a relação patológica que ele desenvolveu no Brasil com a autoridade do árbitro, não aparece nas páginas do livro. É um atraso em sua bem-sucedida carreira, já lhe rendeu repreensão da própria esposa e nem assim ele conseguiu se corrigir até agora. De resto, o livro não deixa nada de fora.
Tudo o que se vê de excelência no time palmeirense hoje em dia está citado e explicado na obra. E o que mais me chama atenção na narrativa do bi da Libertadores e da Copa do Brasil conquistada sobre o Grêmio de Renato Portaluppi é a importância que Abel Ferreira dá ao emocional dos seus jogadores.
Estudioso e meticuloso no planejamento tático — ele e sua comissão técnica projetam cenários dos jogos na noite anterior à partida com direito a prévia de substituições e o que fazer caso fique com um a mais ou um a menos do que o adversário —, o técnico português não descuida um segundo sequer do apelo emocional a quem vai entrar em campo.
Alguns dos métodos podem soar simplórios, como as cartas e mensagens de familiares antes das grandes decisões, mas funcionam. Na hora de contratar, a análise do quesito personalidade do jogador pretendido tem o mesmo valor da parte técnica, física e tática.
O tratamento dado a quem não começa titular é cuidadoso e respeitoso como aquele dado a quem inicia o jogo. Algumas das estratégias táticas mais importantes passam pelo crivo dos jogadores e podem ser alteradas se o treinador sentir que o grupo não comprou sua ideia.
A história gosta mais da versão dos vitoriosos, verdade. Então, é legítimo que alguém esteja neste momento pensando como fica fácil estabelecer parâmetros e vender métodos de treinamento quando se ganha. Eu replicaria que o vencer está justa e diretamente conectado às práticas citadas no livro.
A consolidação do protagonismo de Raphael Veiga, a maleabilidade para lidar com os muxoxos de Dudu, a forte liderança de Gustavo Gomez, a afirmação de Zé Rafael como segundo volante, a polivalência qualificada de Gustavo Scarpa, tudo tem a ver com a forma como Abel Ferreira conduz o dia-a-dia do trabalho.
É um caso fantástico de operação ganha-ganha. O treinador veio para o Brasil virgem de títulos. Segundo seu relato, uma das primeiras coisas que fez ao chegar no Palmeiras foi pedir o depoimento dos jogadores do elenco que eram mais vitoriosos do que ele, Abel.
A hora certa de lidar com redução de danos para ter melhor resultado adiante e a capacidade de se comunicar na dose exata de firmeza e tolerância com os comandados também ajudam a entender o fenômeno Palmeiras. No jogo de ida das oitavas, fez 3x0 no Cerro Portenho em Assunção. Virtualmente, já está nas quartas da Libertadores.
Lidera o Brasileirão e segue candidato na Copa do Brasil. Não creio que vá alcançar os três títulos, não é razoável que consiga. No entanto, o colosso emocional em que se transformou o Palmeiras é a base de tudo o que o time consegue fazer em campo. Vale para grandes viradas e para afirmativas vitórias.
A qualidade do elenco fala muito alto quando é preciso modificar o time ou começar com a maioria de reservas. O aproveitamento dos talentos feitos em casa — Danilo, em primeiro lugar, mas também Wesley, Gabriel Menino e Gabriel Verón — casa em harmonia com os mais experientes. Mesmo o descarte daqueles que bateram no teto vestindo verde e branco acontece com respeito e delicadeza.
Felipe Melo saiu homenageado em vídeo nas redes sociais do Palmeiras. Deyverson, autor do gol do bi da Libertadores, foi avisado com antecedência pelo treinador que não teria o contrato renovado e deixou o clube com palavras de gratidão.
Quanto ao futuro, o melhor sinal de que o cenário imediato do Palmeiras é robusto e promissor está na figura de Endrick. O atacante de 15 anos de idade, recém campeão e artilheiro da Copa do Brasil sub-17, jogará o segundo semestre ainda no sub-20.
Assim que fizer 16 anos, dia 21 deste mês, vai assinar o primeiro contrato profissional com duração de três anos e multa rescisória de 60 milhões de euros. Endrick, em sua jovem carreira, já atuou em 113 jogos oficiais e marcou 87 gols.
Abel Ferreira coordena o projeto de aproveitamento deste diamante e, pela amostragem, terá à disposição no elenco principal um centroavante espetacular no início de 2023. Com plena autonomia, fruto de tantos títulos, o treinador assinou contrato longo com o Palmeiras e já rechaçou propostas do Exterior três vezes superiores ao seu ganho anual no Brasil. Na última renovação, condicionou a permanência à vinda da mulher e das filhas.
Ele se encarregou de convencê-las, vieram. Talvez o projeto de Abel no Palmeiras só seja interrompido pela perspectiva de uma empreitada ainda mais empolgante: assumir a Seleção Brasileira depois da Copa do Catar. Seria indescritível para Abel Ferreira. Seria maravilhoso para o futebol brasileiro.