A nova direção do Inter tinha mais do que o direito, o dever de começar a gestão implementando seu conceito de futebol. Assumiu numa situação melindrosa, havia um treinador e um campeonato em andamento, era preciso garantir um mínimo de estabilidade para que Abel Braga aceitasse completar a tarefa que assumira com o presidente anterior.
Alessandro Barcellos teve a habilidade de entrar em acordo com o técnico que não era o seu para tentar ser campeão brasileiro. Faltou pouco para que o título viesse, mas creio que nem o tetracampeonato brasileiro teria feito o dirigente recuar do acerto que fizera antes com o espanhol Miguel Ángel Ramírez. Nunca saberemos, enfim.
O certo é que o 2021 do Inter começou com pouca turbulência, só a amarga sensação de que dava para ter sido campeão e não aconteceu muito por conta de vacilos do próprio Inter. De qualquer forma, passou.
Ramírez foi trazido para romper com o que estava sendo praticado até então no Inter. Eduardo Coudet já viera antes com ideia parecida, decidiu abortar o projeto por conta própria, discute-se até hoje o quanto cumpriu da revolução prometida. A meu ver, de revolucionário o técnico argentino não mostrou nada. É bom treinador fazendo coisa parecida com o que vejo outros tantos realizando. Substituiu Odair Hellmann e seu jeito reativo de entender futebol. Acertou, errou, inovou pouquíssimo.
Ramírez, no entanto, traduz melhor esta expectativa de ruptura. O Independiente del Valle que ele conduziu ao título da Copa Sul-Americana jogava tentando mixar competitividade e estética. Buscava jogar bonito e competir, vi ser bem-sucedido na intenção muitas vezes. Naturalmente, o conceito de ter a bola sempre que possível e atacar muito mais do que ser atacado traz intrínseco um contêiner de riscos. Na ideia de sair jogando com bola no chão desde o goleiro, sempre haverá 105 metros por percorrer até o gol adversário. É muito espaço para errar. Tanto menor será o índice de erros quanto maior o tempo de treinamento ministrado a jogadores capazes de cumprir a proposta ousada do protagonismo.
E o Inter tem jogadores capazes de cumprir tal missão?
O colunista diz que sim, guardadas as devidas proporções. O Inter não tem peças qualificadas como Flamengo, Palmeiras ou Atlético-MG, por exemplo. Ainda assim, é possível jogar para a frente com bola trabalhada, desde que o contraveneno esteja pronto na perda da bola. Este antídoto precisa estar à disposição a qualquer tempo em que aconteça esta perda. Deu errado a 20 metros do próprio gol, como é que faz? Quando acontecer a 20 metros do gol adversário, o reagrupar para defender é menos grave, dá tempo. Então, o trabalho de Ramírez é desafiador e será extenuante.
Os atuais jogadores vêm de um modelo pragmático onde Abel Braga se autorizou, equivocadamente, a dispor em campo um Inter reativo na última rodada contra o Corinthians no Beira-Rio. Queria contra-atacar dentro de casa precisando vencer para ser campeão! Deu errado, o que não desmerece todo o trabalho do mais vitorioso técnico da história colorada. Mas é este o tamanho do desafio de Ramírez. Fazer ativos jogadores que vinham sendo reativos. Quais são capazes desta transmutação? É metamorfose na veia. Do meio para a frente, Dourado, Edenilson, Patrick, Praxedes, Nonato, Thiago Galhardo, Yuri Alberto, Guerrero, Caio Vidal, João Peglow e outros menos votados podem, sim, compor um time propositivo. Logo haverá Boschilia, já chegou o chileno Palacios.
Se não existem à disposição Everton Ribeiro, Arrascaeta, Raphael Veiga ou Lucas Lima, não significa que os jogadores colorados sejam incapazes. Dependendo de como estejam dispostos em campo, em que geografia reduzida joguem ou não, onde comece a marcação e quantos passem da linha da bola, o Inter tem possibilidade de ser parecido com o que Miguel Ángel Ramírez pretende.
Parecido? Sim, parecido. Igual, só se houvesse mesmo no elenco uma quantidade de jogadores acima da média que errassem pouquíssimo quando com a bola nos pés e fossem capazes também de lutar pela retomada da bola como apaches furiosos em torno da caravana. Poucos times ou seleções no planeta conseguem. Bayern de Munique, Manchester City e seleção francesa, no cenário mundial, conseguem ou conseguiram chegar neste estágio superior de futebol contemporâneo.
No Brasil, o Flamengo alcançou este Nirvana com Jorge Jesus e em raros momentos com Rogério Ceni. O Palmeiras atinge, em certos e raros momentos com Abel Ferreira. O Atlético-MG pretende chegar neste Éden, não chegou com Sampaoli. O Inter mostra disposição de seguir esta trilha ao trazer Ramírez como treinador.
Preparem-se, porém, colorados e coloradas, para turbulências no trajeto, idas e vindas no processo. Preparem-se dirigentes colorados, para bancar o projeto quando houver revés no meio do caminho. O que não falta é cilada à espreita neste audacioso caminhar. Gauchão, Gre-Nal, fase de grupo de Libertadores... tudo pode virar impedimento para o sucesso do projeto. Sem coragem para sustentar o novo conceito, a chance de virar fumaça cedo é enorme. E, entendamos todos, a questão aqui não é bancar o novo porque é novo e sim porque é bom.