O debate excessivamente ideológico, as frequentes crises e a falta de coragem da classe política perpetuaram no Brasil um sentimento de vale-tudo pela hipocrisia. Pode-se fazer qualquer coisa, às vezes à luz do dia. Mas colocar em debate é pecado. Regulamentar, então, é crime. Estou falando de uma infinidade de temas, desde a produtividade em terras indígenas até o cigarro eletrônico. É claro que há campos minados intransponíveis, mas uma sociedade não permitir ser paralisada em qualquer questão controversa.
Justiça seja feita. Em 2023, houve mobilização do governo e da maioria dos parlamentares para regulamentar as apostas online, após anos de espera. Além de movimentar cifras bilionárias, a prática ganha novos adeptos todos os dias e até agora não gerava um centavo aos cofres públicos. É óbvio que o interesse do governo está mais centrado na arrecadação - o que também é legítimo porque, ao menos em tese, arrecadar tributos com apostas evitará a majoração em outra área.
O que o Congresso e o próprio governo precisam no próximo ano, contudo, é abrir os olhos para o que muitos fazem, todo mundo sabe que existe, mas somente a lei ignora. O caso dos cigarros eletrônicos, também conhecidos como vapes, está sob análise da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) por envolver riscos à saúde. Mas o debate não pode se restringir a isso.
A Anvisa proibiu a fabricação e a comercialização dos dispositivos em 2009, mas pesquisas realizadas recentemente indicam que ao menos 6 milhões de pessoas fazem ou já fizeram uso de cigarro eletrônico no país, utilizando produtos 100% piratas. Portanto, não se trata de liberar ou não o uso. O consumidor já fez a sua escolha. Ao poder público, cabe estabelecer as regras, inclusive para minimizar o risco de excessos e para permitir a legalização de um mercado crescente. Esta foi a saída já encontrada pela grande maioria dos países desenvolvidos.
A questão da produtividade em terras indígenas, para citar apenas mais um exemplo, também custa a avançar por estar demasiadamente centrada em aspectos ideológicos. Com amplas áreas demarcadas, fiscalização escassa e falta de regras, indígenas veem suas terras dilapidadas por garimpeiros sem qualquer retorno.
Novamente, não se trata de liberar ou não a exploração. Ela já existe e o poder público nunca terá condições de coibi-la. Se regulamentada, poderá gerar riqueza aos povos originários e arrecadação ao governo.
Enquanto não avançar na extensa lista de temas que aguardam por regulamentação, as atividades seguirão à revelia de lei, e o lucro ficará exclusivamente com a criminalidade.