O comércio, a fabricação e a importação de cigarros eletrônicos — atualmente proibidos no Brasil — geram posicionamentos antagônicos entre especialistas. Os que defendem a proibição dizem que não há provas de que o dispositivo seja menos prejudicial à saúde do que o cigarro tradicional. Já os favoráveis à mudança argumentam que os produtos são menos nocivos e uma regulamentação eficiente poderia lançar luz às substâncias inaladas pelos consumidores.
O assunto voltou ao debate público porque a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu, no último dia 1°, abrir uma consulta pública para receber contribuições sobre o produto.
Desde 2009, uma resolução da agência proíbe a fabricação, a comercialização, a importação e a propaganda de dispositivos eletrônicos para fumar, também conhecidos como vape.
O que dizem os favoráveis à proibição
Luiz Carlos Corrêa da Silva, pneumologista e responsável pelo Programa de Controle do Tabagismo da Santa Casa de Porto Alegre, defende que não seja propagada a ideia de que o cigarro eletrônico não causa prejuízos à saúde ou, ainda, que ele seja menos danoso do que o tradicional.
— Não se sabia de nenhum dano quando o cigarro convencional de tabaco começou a ser usado: foi depois de acúmulo de conhecimento, de pesquisa, que foi visto que ele tinha associação com doenças como câncer. Não se sabe quanto há de nicotina e de produtos químicos na composição (do vape). Há muitas interrogações. Enquanto houver incerteza, o melhor é não haver a liberação para a produção e para o consumo — argumenta.
O especialista argumenta que uma avaliação do que pode causar o consumo do produto é complexa por se tratar de um formato ainda recente — tornou-se popular no início dos anos 2000.
— Não há estudos adequados sobre o cigarro eletrônico, comparando pessoas que usam e que não usam, para saber as consequências com o uso durante anos. Existem trabalhos que, muitas vezes, são de médicos comprometidos com companhias de cigarros ou profissionais contratados para fazer estudos que interessam à indústria — pontua.
Mudança daria falsa sensação de segurança
Amanda Reis Guimarães, pneumologista do Hospital Moinhos de Vento, diz que uma eventual alteração no posicionamento da Anvisa sobre o tema mudaria a forma como o produto é tratado pelo brasileiro.
— A população se sente mais segura quando um dispositivo é liberado por uma agência regulatória. Nesse caso, ela compreenderia a liberação como um indício de que os cigarros eletrônicos não fazem mal à saúde, quando o que seria necessário é uma maior conscientização dos potenciais malefícios e riscos — diz.
Não há estudos adequados sobre o cigarro eletrônico, comparando pessoas que usam e que não usam, para saber as consequências com o uso durante anos.
LUIZ CARLOS CORRÊA DA SILVA
Pneumologista e responsável pelo Programa de Controle do Tabagismo da Santa Casa de Porto Alegre
A aprovação do comércio, fabricação e importação de cigarros eletrônicos no país prejudicaria a política pública brasileira sobre o tema, que, para Amanda, teve sucesso na redução do tabagismo no passado:
— As pessoas não fumam em ambientes fechados, respeitam a lei, estão cada vez mais conscientes dos malefícios do cigarro convencional e procurando atendimento para parar de fumar. A regulamentação e liberação dos dispositivos eletrônicos seria um retrocesso.
Outro argumento rebatido pela pneumologista é quanto ao uso dos cigarros eletrônicos como um aliado no processo de parar de fumar ou, ainda, por ele supostamente ser menos prejudicial do que o produto tradicional.
— A cessação do tabagismo passa pelo tratamento do vício à nicotina. Não faz sentido fornecer um produto que contém essa substância e que também vicia. Precisamos de estratégias que não substituam seis por meia dúzia. A pessoa que começou a fumar o cigarro eletrônico vai desenvolver o vício — finaliza.
O que dizem os contrários à proibição
Alessandra Bastos Soares, consultora da BAT Brasil (antiga Souza Cruz) e ex-diretora da Anvisa, defende que o país tenha uma regulamentação que permita a comercialização dos dispositivos. Ela concorda que faltam informações sobre o que é oferecido ao consumidor no Brasil: o conteúdo dos cigarros eletrônicos ficará “claro”, portanto, apenas em um cenário de fiscalização do poder público.
— Não sabemos quais as misturas estão sendo feitas, e nem a quantidade de nicotina que está sendo ofertada. Não é uma questão somente de coibir a ilegalidade, mas de regulamentar um produto que já está sendo fabricado, é oferecer ao consumidor brasileiro o direito de consumir nicotina de forma menos arriscada. É a Anvisa que tem qualificação para dizer quais são as substâncias que oferecem menor risco — pontua.
É incoerente liberar um produto que é tóxico, como o cigarro tradicional, e proibir outro dispositivo que é menos tóxico, como são os cigarros eletrônicos.
RODOLFO BEHRSIN
Pneumologista e professor da Faculdade de Medicina da UniRio
Alessandra foi diretora da Anvisa até 2020 e diz ter notado resistência na agência para mudar o entendimento sobre o produto. Ela assegura ser falsa a ideia de que o fim da proibição causaria prejuízos no combate ao tabagismo no país.
— O cigarro convencional, sabidamente maléfico à saúde, é regulamentado pela Anvisa. O controle do tabagismo foi balizado por regras da agência. As fábricas tiveram de se adequar para saber quanto de nicotina poderia ser ofertada em cada bastão de cigarro — comenta.
A consultora da BAT Brasil diz que a própria disseminação do consumo do cigarro eletrônico no país, inclusive entre os jovens, é indicativo de que a proibição não é eficaz.
— Não faço apologia ao tabagismo, pelo contrário: gostaria que o Brasil cuidasse dos seus tabagistas da mesma forma que cuidam o Reino Unido, a Suécia, o Canadá, os Estados Unidos e mais de 80 países que já têm uma regra sanitária para esse produto. Será que esses países estão mentindo? (sobre o uso do produto). Ninguém defende que o cigarro eletrônico é isento de risco, mas, comparado ao cigarro convencional, oferece 20 vezes menos.
Prejuízo menor à saúde
Rodolfo Behrsin, pneumologista e professor da Faculdade de Medicina da UniRio, no Rio de Janeiro, reforça o entendimento da ex-diretora da Anvisa sobre o produto ser menos prejudicial à saúde.
— Sabemos que os países que regulamentaram os dispositivos que são certificados por agências reguladoras respeitadas, como o Ministério da Saúde da Inglaterra, conseguem uma redução de toxicidade em torno de 95% quando comparado com o cigarro tradicional — afirma.
O dado da toxicidade é também citado no estudo A experiência sueca: um roteiro para uma sociedade sem fumo, apresentado em março deste ano em Estocolmo, na Suécia. O trabalho foi Health Diplomats, uma rede global de especialistas em saúde pública “comprometidos em desenvolver e fornecer soluções para problemas globais relacionados à saúde”.
Segundo o documento, atualmente, 5,6% da população é fumante no país nórdico, número pouco acima do dos 5% estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como marco para um país se tornar “livre” do tabagismo. O uso do cigarro eletrônico é citado como um dos integrantes da política. O estudo indica redução no número de mortes e casos de câncer de pulmão nos últimos anos.
— A demora em regulamentar e certificar esses dispositivos é um grande equívoco. É incoerente liberar um produto que é tóxico, como o cigarro tradicional, e proibir outro dispositivo que é menos tóxico, como são os cigarros eletrônicos — argumenta Rodolfo Behrsin.