A virada de semestre está agitada sob a perspectiva das contas públicas. Já houve alerta sobre "estrangulamento" do orçamento em 2027, detalhamento de tesouradas e "pré-contingenciamento". E até o final do mês será preciso detalhar um corte ainda maior e mais estratégico, de R$ 25,9 bilhões em gastos obrigatórios, importantes por representar economia que se sustenta ao longo dos anos. Pesquisador associado do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) e especialista em contas públicas, Bráulio Borges está entre os que avaliam que só a redução de fraudes têm potencial para entregar boa parte dos resultados pretendidos.
Qual sua avaliação sobre o detalhamento dos cortes no orçamento de 2024?
É importante observar que são cortes já para este ano, porque muita gente fez confusão com os R$ 25,9 bilhões anunciados para 2025. Houve muitos cortes no PAC, o que gera uma questão política, porque se sabe que há uma certa animosidade do ministro Rui Costa em relação a Haddad.
Os cortes em saúde e educação surpreenderam?
Para quem acompanha, não. É importante lembrar que, por conta da vinculação desses gastos à receita, o mínimo constitucional da saúde subiu R$ 50 bilhões só entre 2023 e 2044. O orçamento deste ano foi feito assumindo R$ 170 bilhões em aumento de receita. Isso elevou a necessidade de gastos para cumprir a vinculação. Existe até dúvida se se vão conseguir gastar tudo isso, o que pode elevar o empoçamento (gastos previstos e não realizados).
Como o empoçamento ajuda a cumprir a meta de déficit zero?
O critério para o resultado primário do Brasil é o que efetivamente saiu do caixa. Os investimentos têm uma sequência de despesas que pode autorizar em agosto, mas só vai desembolsar no ano aseguinte, quando a obra for concluída. A maioria dos gastos discricionários do orçamento tem quatro fases: autorizado, empenhado, liquidado e pago. No caso dos obrigatórios, como previdência ou pessoal, todo o orçado é pago. Mesmo quando há bloqueio, não é preciso paralisar obras. Pode empenhar, autorizar o início e prorrogar o pagamento no tempo e contabilizando nos restos a pagar. Isso é bem diferente de pedalar, que foi definido como contrair empréstimo em bancos públicos, o que é proibido pela legislação, para melhorar o resultado primário. Restos a pagar fazem parte do rito orçamentário brasileiro.
A contenção extra de gastos ao longo do ano ajuda?
A medida aumenta a contenção de R$ 15 bilhões para cerca de R$ 47 bilhões. É uma espécie de pré-contingenciamento, com redução de empenhos até setembro, que não permite gastar o tudo que está programado. É uma medida inteligente, porque vai criando graus de liberdade para novos contigenciamentos nos próximos meses, não é um bloqueio definitivo. Ajuda a evitar o comportamento de muitos ministérios que estavam acelerando empenhos para tentar fugir dos cortes de orçamento.
Essa medida ajuda na percepção de maior compromisso com o déficit zero?
É a medida mais forte, sinal de maior compromisso do governo como um todo, porque não foi feito só na Fazenda, teve aval da ala mais política. É importante porque ainda se vê, no mercado, projeções de déficit alto. Algumas poucas casas já corrigiram, inclusive descontando o crédito extraordinário para o RS que não vale para o cumprimento da meta. Deve gerar, nas próximas semanas, revisões para melhor do resultado fiscal.
E ainda faltam os cortes para 2025...
Até o final do mês, o governo precisa encaminhar o projeto de lei orçamentária para 2025. Aí terão de aparecer os R$ 25,9 bilhões de corte de despesa. E desta vez será nas obrigatórias, não nas discricionárias como as deste ano. O mercado reagiu bem ao anúncio, mas quer detalhamento. Não é fácil cortar quase R$ 26 bilhões de despesas obrigatórias. O governo já anunciou uma auditoria no BPC (Benefício de Prestação Continuada) e na previdência.
Será suficiente?
É importante que o governo vá, a cada mês mostrando estimativas do percentual de fraudes encontradas no universo dos pagamentos sob suspeita para mostrar o potencial da medida. A gente tem uma boa pista olhando o que ocorreu com o número de benefícios de meados de 2022 para cá, que explodiu. Talvez seja necessário um projeto de lei para mudar ou deixar menos brechas sobre critérios. Muitos benefícios estão sendo concedidos via Justiça, que raramente nega. E além do BPC, ainda há ajustes a fazer no Bolsa Família. Os benefícios unipessoais aumentaram de 2 milhões para 6 milhões depois que o governo mudou a regra em 2021, pouco antes das eleições. Ao longo de 2023, houve redução para perto de 4 milhão. Foi expressiva, mas é óbvio que não houve explosão de famílias unipessoais em três anos. É um indício de que existe muita fraude. Se o número voltasse a 2 milhões de beneficiários unipessoais, representaria só aí uma economia anual de R$ 14 bilhões. Pode ser que não consiga reduzir tanto, mas é para mostrar como é relevante. E esse tipo de redução de gasto é importante porque não ocorre uma vez só, é permanente da despesa.
O ministro Haddad disse que o governo estuda desvincular as despesas de saúde e educação. É possível?
Não é preciso desvincular, mas é possível pensar em vinculação mais inteligente. Vincular despesa a receita é ruim sob vários aspectos. Coloca no orçamento toda a volatilidade da receita de curto prazo e prejudica o planejamento plurianual. Outro problema é que, se saúde e educação recebem 100% do aumento da receita e as demais estão sujeitas ao limite de 70% do arcabouço fiscal, ao longo do tempo vão espremer as demais que são espremíveis, ou seja, as discricionárias. Isso pode levar a uma situação semelhante ao shut down dos Estados Unidos, ter de descontinuar serviços públicos. Na prática, a vinculação inviabiliza o próprio arcabouço fiscal. Não é um tema urgente, para 2025, mas é preciso começar a pensar agora para mudar, porque depende de emenda constitucional.
Na formulação do arcabouço, isso não foi percebido?
Nós alertamos, no Ibre. Avisamos 'olhem para isso'. Ignoraram. A vinculação da educação existe, de fato, desde 1988, mas a da saúde só valeu por um ano. Foi regulada na PEC que deu caráter impositivo às emendas parlamentares individuais em 2016, em seguida veio o teto de gastos, que desvinculou.
Qual seria a vinculação mais adequada?
O ideal seria desvincular saúde e educação dos ciclos econômicos. Uma das formas seria definir um gasto real per capita, definir um piso e pode corrigir pela inflação, talvez até com algum crescimento real. Seria uma vinculação mais inteligente. Ao usar gasto per capita, já restringe porque não leva em conta toda a população. Daria muito maior previsibilidade plurianual.