Neste ano, o Plano Real, que domou a hiperinflação no Brasil, faz 30 anos. Um de seus formuladores, o ex-presidente do Banco Central (BC), Gustavo Franco, está escrevendo um novo livro sobre essa experiência considerada por muitos como a mais importante reforma institucional no Brasil depois da Constituição. Em entrevista exclusiva à coluna, Gustavo elogiou o atual presidente do BC, Roberto Campos Neto, mas criticou sua tentativa de obter "autonomia orçamentária" para a instituição.
Já que estamos no Fórum da Liberdade, em 2019 você quase anunciou que estava indo para o governo, o que ocorreu?
Tinha um convite para ocupar o cargo de presidente do conselho do BNDES. Na ocasião, Paulo Guedes, Salim Matar, estavam todos começando, muito animados, e houve esse convite, mas que não progrediu.
Visto hoje, é mais arrependimento ou livramento?
Nenhum arrependimento de não ter entrado. Ir para o governo tem um componente de acaso muito grande. Dei muita sorte de o telefone ter tocado e ser Fernando Henrique (Cardoso). Participei de um episódio maravilhoso. Foi um privilégio, uma sorte. É bom contar com a sorte.
Como vê a política fiscal do atual governo?
O que é preciso não perder de vista neste governo é que não tem uma personalidade quando se trata de política fiscal. Você tem um grupo remando numa direção, o ministro (da Fazenda, Fernando) Haddad comprometido com uma ideia de um superávit primário pequeno, nada muito ortodoxo. E outra parte do Partido dos Trabalhadores acha que não precisa de responsabilidade fiscal. Então, quando você pergunta qual a política fiscal desse governo, não dá para saber. No fim do exercício, a gente vai fazer a conta para ver se foi positivo ou negativo, se foi superávit ou déficit. Não sei dizer para qual lado vai. Sei que o Banco Central é mais para o ortodoxo, mais conservador, mas o fiscal está um pouco mais para o outro lado. Este governo é uma orquestra um tanto desafinada, ou melhor, cacofônica. Cada um toca a sua música.
É um assunto do funcionalismo do Banco Central (a autonomia orçamentária). É uma pauta do sindicato, não da política monetária.
Nesta semana, o Banco Central fez a primeira intervenção no câmbio em dois anos. Foi justificável?
É muito conjuntural. A atuação do BC em câmbio ocorre toda vez que tem alguma coisa fora do comum. É dever da autoridade evitar que distorções produzam efeitos. Para isso, o Banco Central faz o seu trabalho em reduzir a volatilidade. Não vi nada de mais no movimento do Banco Central, não acho que seja uma tendência.
A proposta do presidente do BC de ter autonomia orçamentária é uma boa ideia?
Acho que é uma má ideia, porque não tem nada a ver com a autonomia da política monetária nem com o debate sobre independência do Banco Central. É um assunto do funcionalismo do Banco Central. É uma pauta do sindicato, não da política monetária.
A definição sobre o presidente e os dois diretores do Banco Central será fundamental para a índole da instituição.
A outra é antecipar a sabatina do próximo presidente do BC, já que em dezembro termina o mandato de Campos Neto? Normalmente, seria só depois...
Vou discordar, porque desta vez não tem normalmente. É particularmente diferente, porque é a primeira vez que teve, para começar, um presidente do BC com mandato entrando no presidente seguinte. E um presidente do BC que conviveu com o presidente da República que não foi aquele que o nomeou. Foi a primeira vez que tivemos essa tensão. O presidente Lula já escolheu quatro integrantes dos nove da atual diretoria. Essa matemática é importante, porque mostra que o Lula supostamente ainda não tem a maioria. E, no fim deste ano, o Lula nomeia três, sendo um o presidente do BC. O governo vai dar um rosto para a instituição.
Você vê risco nisso?
Sim, porque pode acontecer qualquer coisa. O presidente Lula indicará uma pessoa que vai passar por uma sabatina, sendo aprovada ou não no Senado. Depois, vai para o Planalto. O Lula vai escolher alguém que terá trânsito fácil. Já começou a especulação sobre o perfil. Pode ser o (Gabriel) Galípolo, que vem do mundo do petismo, pela mão do Haddad e tem raízes no mercado financeiro. Ou pode vir alguém diferente. Não sei qual o perfil ideal, é uma pergunta que todo mundo está se fazendo, e eu não vou especular. A definição sobre o presidente e os dois diretores do Banco Central será fundamental para a índole da instituição. Essa definição vai ter de ocorrer no começo do segundo semestre.
Quando o Congresso estará focado na campanha eleitoral.
Pior, quando o Copom terá começado a parar de descer a taxa de juro. E vai voltar toda essa discussão. Nesse momento, também vai ser discutido o nome para substituir o Roberto (Campos Neto). É complexo, talvez por isso ele esteja pensando no momento ideal de fazer a sabatina, a escolha.
Ainda há muito debate sobre o nível das reservas brasileiras, é adequado ou demasiado?
Acho altíssimo. Até porque, quando um país tem taxa de câmbio flutuante, esse país não precisa de tanta reserva. Se faltar dólar no mercado, o câmbio sobe. Se sobrar, desce. Isso é flutuação. Não precisa de tanta reserva. O que preciso ter clareza é que, para comprar essas reservas, foi preciso emitir dívida pública. O dinheiro das pessoas foi utilizado para isso. O governo Lula gastou mais dinheiro com a acumulação de reservas do que com o PAC.
Para voltar à questão fiscal, o mercado projeta déficit de 0,8% do PIB. Seria aceitável?
Qualquer prognóstico sobre o resultado fiscal no final do ano é frágil, há muita incerteza. Não há uma filosofia da política do governo, porque é o resultado constante de forças contraditórias. Não ter uma lógica tem um preço. Temos um problema fiscal. E o governo acha que é preciso resolver o problema fiscal com o aumento de impostos. Zero pessoa dentro do governo acha que o problema fiscal pode ser resolvido reduzindo despesas. Ou é aumento de imposto ou é déficit. Quem olha isso não está confortável, sobretudo os empresários, que acham que já estão pagando muito imposto, com razão. Por outro lado, o governo tem ambições que requereriam mais despesas. São forças contraditórios.
A desvinculação entre receita e despesa, como no caso da saúde e da educação, pode ser alternativa para reduzir o gasto?
Desde o meu tempo, a vinculação é percebida como um problema. É um problema orçamentário e operacional da política fiscal. Não é surpresa que seja uma questão. É mais uma dificuldade na definição da estratégia fiscal do governo.
*Colaborou João Pedro Cecchini