O jornalista Rafael Vigna colabora com a colunista Marta Sfredo, titular deste espaço
Roger Waters subiu ao palco da Arena, em Porto Alegre, na quarta-feira, propondo reflexões. Foi um convite a uma conversa de mesa de bar, entre amigos ou não, mas onde haja diálogo capaz de prevalecer sobre eventuais discordâncias.
O idealizador do Pink Floyd – que nunca foi ou almejou ser uma banda pop – se torna mais profundo quando liberta a própria obra, sem deixar de reverenciá-la. Já no primeiro “convite” para que se retirassem ao bar os que pensassem ver algo distinto do prometido, ironicamente, é o mesmo para “The bar”, no entorno do piano, oferecido por Waters aos que ficassem para ouvir a sua nova canção autoral.
Não havia saída possível. A música e o convite, que mais tarde incluiria Bob Dylan, em letra e referência na conversa, são um retrato do pós-pandemia, onde a incompreensão não é tributária do que o mundo enfrentou há menos de quatro anos. Na primeira música, “confortavelmente entorpecido” (na tradução), o jaleco branco vestido e cadeira de rodas empurrada pelo próprio Waters fincam a estaca temporal e demarcam o território.
É uma referência à covid-19, e não ao protagonista do filme The Wall. O cenário já não remete ao passado. Anuncia o futuro. “Foi como olhar na direção errada através de um par de binóculos”, dizia uma das frases que antecedem, o pedido (ignorado por 99,9% do público, é bem verdade) para que os celulares fossem desligados. Simbólico, mas fala por si.
Na atmosfera criada para o seu último ato, mesmo que a turnê se chame This is Not a Drill (isso não é um exercício, expressão que no inglês é usada para reafirmar: o que está diante dos olhos é real, e não mera simulação, ou ensaio) Waters oferece mais uma vez a lente daquele que dedicou obra e carreira a destruir um muro imaginário, ainda que antes o tenha construído.
This is Not a Drill é maior, diferente. Começa pela devastação e revela temas como o debate sobre a renda média mundial, tão presente na pandemia, quando os países tiveram de injetar US$ 7,2 trilhões nas economias nacionais para socorrer aos que ficaram, enquanto milhões partiam em hospitais superlotados que expuseram a fragilidade da população mundial.
Há também a crise climática em toda a estética apocalíptica e uma incômoda e latente ausência da figura humana, uma ponte ao desconhecido mercado de trabalho e de consumo na era da inteligência artificial, sobretudo, para os que vivem abaixo da Linha do Equador, e sequer a inclusão da população negra conseguiram atingir.
No mundo pós-pandêmico, com dois fronts em aberto, Waters não faz concessões à guerra. Não a tolera, e nem chega a adentrar em motivações, porque abomina os efeitos do ato que o tirou o pai aos cinco anos. Seria um pacifista, não fosse o fato de admitir e exercitar a "violência" em críticas ferozes contra o que lhe foge a essência.
Aos 80, não perdeu a voz por chamar, incansavelmente, a atenção ao que chega a ser ingenuamente óbvio, como apontar o dedo ao coletivo para dar-lhe o papel de “protagonista”, em meio às lentes individualistas contemporâneas. Sairá de cena na transição do pós-humanismo para a pós-realidade, mas não sem antes nos brindar seu binóculo em um bar, por última vez. Basta escolher olhar pela lente que afasta ou aquela que aproxima. O jornalista que hoje assina essa coluna agradece e se despede. Até logo, Roger Waters!