Em 29 de outubro de 1993, começava a circular a nota de 5 mil cruzeiros reais (CR$). Conhecida como “o gaúcho”, em uma das faces, estampava a figura típica do Rio Grande do Sul, com a mirada no horizonte e as ruínas de São Miguel das Missões ao fundo. Na outra, o personagem, montado, se prepara para um tiro de laço. Há exatas três décadas, a cédula, assim como as demais do cruzeiro real, ajudaria a enterrar o período da hiperinflação, ao abrir as porteiras para que a atual moeda, o real, fosse efetivada no ano seguinte.
Para se ter uma ideia, antes do real, a inflação era tamanha que as manchetes de jornal já indicavam: do anúncio, feito em junho, até outubro, a nota que referenciava o RS somou nada menos do que 60% de desvalorização. Era pouco para os padrões da época, já que naquele ano a inflação acumulada ficaria abaixo de 1.000%, o que só havia acontecido uma vez nos cinco anos anteriores.
Com a nota, em junho, comprava-se 100kg de costela bovina. Quatro meses depois, apenas 20kg. Estreou no mercado valendo US$ 30. Ainda assim, três gaúchos e um “lobo-guará” (a moeda de CR$ 100, mesma ilustração da atual nota de R$ 200) eram suficientes para pagar o salário-mínimo de novembro, cotado a CR$ 15.021.
Sim, naquela época, o rendimento mensal oficial do país era atualizado com mais frequência. Em dezembro, por exemplo, foi necessário incluir, no maço de notas, sete “Mários de Andrade” (o escritor modernista que emprestava rosto e chapéu à cédula de CR$ 500) para arcar com os CR$ 18.760,00 mensais a que os trabalhadores tinham direito.
Era um dos efeitos da corrosão do poder de compra, abocanhado a cada 24 horas pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), à época, também denominado de “bicho-papão”. Hoje, não mais que o “fantasma” da hiperinflação.
A expectativa pela nova moeda
Nos meses que antecederam o sétimo padrão monetário da economia recente, antes do atual, o debate sobre o salário-mínimo rachava ao meio o Congresso Nacional. O tema era usado pelo parlamento para pressionar o recém-instaurado governo de Itamar Franco. O mineiro, conhecido pelo alvo topete, assumiu a presidência em setembro de 1992, após o impeachment de Fernando Collor de Mello.
Na montagem do governo, Itamar chamou o homem que viria a sucedê-lo na Presidência, Fernando Henrique Cardoso, para comandar o Ministério da Fazenda. Teria início ali um amplo ajuste fiscal que, entre outros fatores, eliminaria US$ 6 bilhões do orçamento federal nos primeiros doze meses.
O economista da UFRGS Marcelo Portugal relembra que Brasil começava a resolver dois dos três problemas com os quais conviveu por décadas: a “inflação galopante” (termo usado em sinônimo à hiperinflação) e a escassez de dólares, provocada pelo desequilíbrio na balança de pagamentos entre exportações e importações.
— O terceiro, continua entre nós. É o descontrole de gastos (fiscal) — resume Portugal
Uma curiosidade: é no período em que o gaúcho de CR$ 5 mil circulava que a trajetória de um futuro governador e uma futura governadora do Estado ganharam holofotes sobre suas atuações. Yeda Crusius (2007/2011) era a então secretária de Planejamento e Orçamento de Itamar. Antônio Britto (1995/1999) ocupava o Ministério da Previdência Social.
À época, o presidente do Banco Central, Paulo César Ximenez, casado com uma gaúcha, e que havia residido no Estado, foi questionado se a referência seria homenagem à esposa. Em tom jocoso, declarou que Britto era a referência.
Três décadas atrás, as semanas que demarcavam a expectativa pela circulação do gaúcho de CR$ 5 mil fracionam espaços de jornais com temas semelhantes aos atuais. É o caso da convulsão social e a guerra de facções no Rio de Janeiro, após o fuzilamento de sete meninos do morro da Candelária no episódio “tribunal do tráfico”, do conflito interno debelado na Rússia de Boris Yeltsin e do célebre aperto de mãos entre o primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, e o líder palestino, Yasser Arafat, promovido pelo presidente norte-americano, Bill Clinton.
No Brasil, a crise que retirara Fernando Collor do Palácio do Planalto ainda respingava, havia uma caçada ao tesoureiro de campanha PC Farias, refugiado em Londres, e a CPI dos “anões do orçamento” (um escândalo de corrupção que envolvia deputados e prêmios da loteria federal) dava o tom das manchetes.
Nos cinemas, Jurassic Park, Aladdin e Madame Bovary disputavam bilheterias. Nas pistas, outro francês, Alain Prost, destronava Airton Senna no GP de Portugal, quando imitou o gesto do piloto brasileiro ao celebrar, mas com a bandeira azul, branca e vermelha de seu país, o título da Fórmula 1 daquele ano por antecipação.
Exemplar chega a custar até R$ 200
Com um dos exemplares, que vão da série A0001 a A9999, em mãos, o colecionador Marcelo Carvalho explica que os valores variam. Tendem a ganhar relevância com o tempo, pois circularam por um curto período – neste caso, entre outubro de 1993 e setembro de 1994. Na internet, existem exemplares à venda por cerca de R$ 200.
Os 20 primeiros "gaúchos" a deixarem as rotativas da Casa da Moeda foram guardados no acervo do Banco Central (BC). É o que comenta a chefe do museu de valores do BC, Karla Sá Valente, ao informar que o sistema de emissão privilegia, sempre, as notas de menor valor. Por essa razão, o gaúcho demorou algum tempo para circular.
Isso também explica a peça mais rara daquele padrão monetário. Trata-se da sorridente baiana que do alto de um olhar luminoso dava forma à nota de CR$ 50 mil, a maior entre as demais. Além das referências regionais, figuras da cultura estampavam as cédulas, numa clara referência à unidade nacional, arrisca Marcelo Carvalho.